terça-feira, 6 de maio de 2014

PSICOPATA, OU NÃO

Era o primeiro frila, a primeira matéria para uma revista, de qualquer espécie, no caso mensal, e no fim das contas um teste para futura contratação. O editor-chefe, que nunca me vira antes, me deu a pauta e disse que era caso de entrevistar o diretor do hospital penitenciário, talvez o psiquiatra, já que com o cara seria muito difícil falar. Mas logo o assessor do governo já atendeu muito bem, marcou a entrevista no hospital, com o diretor, e chegando lá, na sala dele, do diretor, tava lá o cara, quieto, tranquilo, respondendo a tudo bem do jeito dele, quase calado, discreto, calmo, para a matéria aí embaixo.

Revista Incrível, edição 39, de janeiro de 1996
 “Ele é um retardado mental que pode vir a praticar atos psicóticos”.
Ao voltar do trabalho, em Copacabana, para a sua casa, em Itaboraí, Marcelo da Costa Andrade vê um menino vendendo biscoito de polvilho no Centro de Niterói e oferece dinheiro para que o garoto o ajude a colocar velas para São Jorge. Em um terreno baldio próximo à Rodovia Niterói-Manilha (RJ-104), Marcelo tenta seduzir o garoto e, sem sucesso na investida, bate-lhe com pedras na cabeça, asfixia-o e estupra-o depois de morto. Esse foi o primeiro assassinato praticado por Marcelo, que repetiu a história das velas para São Jorge para atrair e matar outros treze garotos, todos de 6 a 13 anos de idade.Entre os crimes do serial killer, alguns merecem destaque pelos requintes de crueldade. Ânderson Gomes Goulart, de 11 anos, teve a cabeça arrebentada e foi estuprado, enquanto o assassino bebia seu sangue. A vítima ainda teve o pescoço quebrado após ser violentada. Na época, Marcelo confessou que bebera o sangue de Ânderson para ficar “jovem e bonito como ele”.
O garoto Odair José Muniz dos Santos, também de 11 anos, teve destino semelhante. Marcelo matou e estuprou o menino em um campo de futebol às escuras, foi para casa e, duas horas depois, voltou ao local do crime, em Itaboraí, e serrou a cabeça de Odair. A forma como foi praticado esse homicídio revela um claro sentimento de vingança do assassino contra seus ex-colegas do Internato Casa dos Meninos, no Engenho de Dentro, Rio, onde ele permaneceu dos 10 aos 14 anos de idade e foi molestado por internos e inspetores. O próprio Marcelo deu claros sinais disso quando afirmou, há quatro anos, que cortou a cabeça de Odair para que “as crianças debochassem dele quando chegasse ao céu”.
Foi uma vítima em potencial do serial killer que contribuiu para sua prisão. Altair, 10, fugiu de Marcelo após ver seu irmão, Ivan, 6, ser violentado sexualmente e morto. Para escapar da morte, Altair aceitou acompanhar o matador durante dois dias, dizendo que ficaria com ele. Nesse período, o garoto foi obrigado a praticar sexo oral com o assassino. Em um descuido de Marcelo, que levara Altair para seu local de trabalho, o garoto conseguiu fugir e voltar para Niterói de carona. Cinco dias após a morte do irmão, Altair levou a polícia ao local de trabalho do assassino, que distribuía panfletos para uma loja de Copacabana, acabando com uma das mais insanas séries de crimes da história do país. Marcelo não resistiu à prisão e, na ocasião, disse apenas que “queria tirar da cabeça essas idéias de transar com garotos”.
Hoje, ele é um tranqüilo paciente do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, no Complexo Penitenciário Frei Caneca, no Rio. Acusado pela morte de 14 meninos entre abril e dezembro de 91, Marcelo Costa de Andrade, 28 anos, não revela qualquer indício que possa denunciá-lo como o homem que matou, estuprou, esquartejou e até bebeu o sangue de algumas de suas vítimas. Aparentemente inofensivo, Marcelo mantém as mesmas características de quatro anos atrás: o jeito silencioso, com respostas telegráficas a todas as perguntas, e a incapacidade de se emocionar. O assassino ainda fala de seus crimes com a mesma frieza e naturalidade da época em que foi detido. E se diz contente com o título brasileiro conquistado pelo Botafogo, time pelo qual torce.
Marcelo foi preso no dia 17 de dezembro de 91, depois que o menino Altair escapou de ser o décimo quinto menor assassinado e o entregou à polícia. Levado para exames no Hospital Heitor Carrilho, o serial killer recebeu o atestado de insanidade mental e, depois de ser inocentado de seus crimes, foi enviado para o Hospital Psiquiátrico Roberto Medeiros, em Bangu, no Rio de Janeiro. Em novembro de 93, ele voltou para o Heitor Carrilho, onde permanece até hoje. De acordo com o diretor do hospital da Frei Caneca, Anaton Albernaz de Oliveira, 47 anos, Marcelo não é um psicopata, como chegou a ser cogitado na época de seus crimes. “Na realidade, o Marcelo não pode ser considerado louco. Ele é um retardado mental que pode vir a praticar atos psicóticos”, explica o médico, recorrendo às sutilezas da psiquiatria, que não param por aí.
O último laudo expedido pelo hospital sobre o paciente revela, entre outros desequilíbrios, “embotamento afetivo” (dificuldade de expor emoções, frieza) e “ideação delirante de cunho místico” (fanatismo religioso). Essa segunda característica está presente em seu comportamento há quatro anos, quando ele afirmou que matara os garotos inspirado em um sermão do pastor Eliezer de Ávila, da Igreja Universal do Reino de Deus, segundo o qual as crianças mortas iriam direto para o céu. Isso (quase) explica o fato de Marcelo ter matado apenas meninos. 
A devoção do assassino pela Igreja Universal, iniciada em 89, é a mesma. Ele ainda costuma ler a Bíblia e freqüenta os cultos realizados no Heitor Carrilho todas as sextas-feiras. Além dessa particularidade, a rotina de Marcelo só difere em uma coisa da dos demais pacientes do Heitor Carrilho: ele é o disck-jockey oficial do hospital. Diariamente, entre nove da manhã e quatro e meia da tarde, se encarrega do repertório tocado no pátio – na verdade apenas a programação de rádios, como a 98 FM e a Jovem Pan, já que não há discos ou fitas cassetes disponíveis.
Em mais de dois anos de permanência no hospital, Marcelo não teve qualquer problema com seus colegas de enfermaria. “Ele é prestativo e ajuda em vários serviços, inclusive o de limpeza”, conta o chefe da zeladoria do Heitor Carrilho, César da Costa, 40 anos. “Convivo com ele desde os seus primeiros exames aqui, em 92, e não tenho qualquer reclamação quanto ao seu comportamento”, garante. A convivência pacífica entre Marcelo e seus colegas não deixa de ser surpreendente. Mesmo considerados menos arriscados que uma penitenciária – onde certamente o serial killer sofreria duras represálias por parte dos detentos –, os hospitais psiquiátricos também costumam ser locais perigosos para criminosos como Marcelo. “O estuprador corre risco até no hospital, mas aqui nunca houve ameaça contra ele”, diz Anaton de Oliveira.
Apesar de o comportamento do assassino ser praticamente o mesmo de quatro anos atrás, o diretor garante que ele já apresentou mudanças desde que foi internado no Complexo da Frei Caneca. “Não existe cura para quem é retardado mental. O nível intelectual de um doente desses não cresce, mas seu comportamento pode melhorar. Quando Marcelo chegou aqui estava em precárias condições de higiene e não largava a Bíblia; agora ele já anda mais arrumado e não lê tanto a Bíblia”, conta o diretor. O psiquiatra responsável pelo paciente, Walmir Lélis de Assunção, 40 anos, também vê algumas melhoras. “No início ele era relutante em falar sobre o que tinha feito, mas, com o tempo, começou a falar. No entanto ele ainda dissimula um pouco e não tem críticas sobre a gravidade dos delitos que cometeu”.
Atualmente, as chances de Marcelo receber alta são mínimas. Os pacientes enquadrados no Artigo 26 do Código Penal (prática de crime provocada por insanidade mental) têm prazo de um a três anos para serem examinados e tratados por cada crime que cometeram. Até agora, o Hospital Heitor Carrilho examinou apenas quatro dos 14 homicídios praticados por Marcelo. Além disso, a presença da família do paciente é fundamental para que ele receba alta, e a mãe de Marcelo, Maria Sônia da Costa, não visita o filho desde junho de 94. “Para sair daqui o paciente tem de ter um lugar para ficar e, sem a família, isso é quase impossível. Em sete anos que administro o hospital, só liberei um paciente sem família”, conta Anaton, admitindo que, hoje, o assassino poderia voltar a praticar seus crimes em série se fosse libertado.
A ausência da mãe também serve para provar o desequilíbrio mental de Marcelo, já que ele garante que ela o visita quinzenalmente, embora não haja registros disso no departamento de assistência social do hospital. Tudo indica que o assassino em série continuará afastado do convívio com a sociedade por um bom tempo, talvez até a morte, como chega a cogitar Anaton de Oliveira. 
Durante a entrevista com a equipe de INCRÍVEL, Marcelo demonstrou preocupação em ser fotografado. “O pessoal pode ver a revista e ameaçar a minha mãe por causa de todas as maldades que eu fiz no passado”, disse, antes de aceitar posar para as fotos, mas só com uma camisa do Botafogo. Além de escutar os jogos de seu time, Marcelo gosta de jogar dominó, totó e pingue-pongue. Cumprindo uma rotina diária, ele acorda por volta das oito horas e vai para o pátio, ligar o rádio, às nove, quando as portas da enfermaria são abertas. Ele costuma passar os dias no pátio até as quatro e meia da tarde, quando os pacientes são novamente recolhidos para as enfermarias. Apesar da vida tranqüila que leva no hospital, sem nunca ter sido molestado pelos colegas, o assassino de 14 meninos não esconde o desejo de viver em liberdade. “Quero sair daqui e voltar pra casa”, sonha.