domingo, 20 de janeiro de 2008

DA LATA AO FUNDO DO MAR



Houve uma vez um verão, há exatos 20 anos, em que um barco chamado Solano Star fez a alegria de muita gente no Rio. Para fugir de um flagrante, despejou no litoral carioca milhares de latas com maconha dentro. E o produto, dizem, era de excelente qualidade.

Algumas latas chegaram a praias de todo o estado, outras foram apanhadas quando ainda estavam bem longe da areia. Surfistas fizeram a festa, teve gente que alugou barco pra fazer a ‘colheita’ e há relatos de malucos que saíram pra pescar com um ímã no anzol, mas aí já era sacanagem. O assunto foi notícia durante todo o verão de 1988, que até hoje é conhecido como o verão da lata.

Confiscado depois pela Polícia Federal, o Solano Star foi leiloado e voltou a virar manchete seis anos depois, já com outro nome. Rebatizado de Tunamar, o barco foi adaptado para a pesca do atum, mas pelo visto foi mal adaptado, porque naufragou em sua primeira viagem na nova função, na madrugada da terça-feira, 11 de outubro de 1994.

No dia seguinte, eu, que trabalhava no agradável horário de 8 da matina no velho O Fluminense, o maior jornal de Niterói, atendi o telefone mais ou menos nessa hora, logo após chegar à redação vindo a pé da estação das barcas, em caminhada sempre muito agradável, sobretudo no verão. Do outro lado da linha, um representante da colônia de pescadores Z8 (de Niterói e São Gonçalo) informava o ocorrido naquela que foi a maior tragédia com pescadores da região em 13 anos.

Cobri a história o resto da semana, fui a Arraial do Cabo e me pediram uma dominical sobre o naufrágio, com mais relatos de sobreviventes, mais detalhes etc etc. É a matéria que tá ali embaixo, e ela foi a minha ligação com o Tunamar.

Já com o Solano Star... Bem, conheço um cara que, na festa de fim de ano da segunda séria do segundo grau (hoje ensino médio), na casa da avó do Karram, saiu de lá para a casa do Batata, ali perto, junto com o próprio e mais dois ou três amigos. Batata era um sujeito calmo, tranqüilo, que de vez em quando chegava atrasado na sala de aula vestindo uma calça moleton do lado do avesso. Ele tinha uma lata daquelas em casa.

O cara tinha dezesseis anos e mal tinha fumado um baseado inteiro na vida quando resolveu acompanhar os amigos à casa do Batata. Meia hora depois de chegar lá, ele começou a suar frio e a respirar com certa dificuldade, sem conseguir se mexer no sofá e com a cabeça caída no peito. Estava praticamente desmaiado, o mané, e só acordou quando enfiaram uma colher de sopa cheia de sal pela goela dele abaixo.

Conseguiu então levantar e caminhar com dificuldade, mas manteve o ar abobalhado e os olhos quase fechados durante um bom tempo, mesmo depois de voltar ao churrasco, onde a maior diversão era dar cerveja ao cágado que circulava serelepe pela casa da avó do Karram.

Ainda com os juízos um tanto atrapalhados, o cara resolveu não subir pro churrasco. Ficou sentado na escada de pedra da entrada por um tempo, cabeça entre os braços, perto dos joelhos, enquanto alguns grilos ao redor, passarinhos nas árvores e outras criaturas das proximidades, talvez até o cágado, emitiam vários sons, alguns mais altos, outros curtos, secos, mas todos incompreensíveis. Ele se esforçou bastante para entender o significado de todos aqueles ruídos, chegou a pensar que os passarinhos estavam se preparando para atacar os grilos, ou vice-versa, mas quando começava a decifrar os códigos do ataque foi interrompido por gritos de alguns colegas brincando na piscina, lá em cima.

Até que desistiu de entender qualquer coisa ali e, ainda muito doido, achando que ia morrer e ao mesmo tempo tentando pensar numa estratégia de chegar em casa sem chamar a atenção dos pais, resolveu ir embora. Caminhou no ritmo de alguém que tivesse acabado de sair do coma, e assim deve ter gastado uns quarenta minutos para descer a ladeira de seiscentos metros até a rua principal, onde apanhou um ônibus amarelo qualquer. Chegou em casa são e salvo, aliviado por ter entrado no quarto sem ninguém notar seu estado e só um pouco arrependido, por ter feito tanta questão de experimentar o tal veneno da lata.

A matéria abaixo era de página inteira e tinha mais textos, memórias de outros naufrágios, denúncias de pescadores e outros complementos da reportagem. Aqui vai apenas o texto de abertura e a história do barco.

Jornal O Fluminense, edição de domingo, 16, e segunda-feira, 17 de outubro de 1994


"A água foi subindo e eu disse para o pessoal que iríamos morrer se ficássemos ali. Fui o único que mergulhei para tentar achar uma saída debaixo d’água. Quando cheguei à tona gritei pelos que estavam comigo, mas ninguém respondeu."

Seis dias depois do naufrágio do barco pesqueiro Tunamar, no litoral de Arraial do Cabo, as lembranças da tragédia continuam fortes em todos os sobreviventes. Dos 31 tripulantes que estavam na embarcação, 20 conseguiram sobreviver ao acidente mais grave dos últimos 13 anos envolvendo pescadores de Niterói e São Gonçalo. A maioria deles já está nessas cidades. Alguns relembraram as horas de tensão e desespero que passaram no mar.
O Tunamar partiu na noite de sábado do cais da antiga fábrica de sardinhas 88, na Ilha da Conceição, com destino a Santa Catarina. O barco estava em Arraial do Cabo pescando sardinhas, usadas como isca para o atum que seria pescado em Santa Catarina. O naufrágio aconteceu a oito milhas (12,8 km) da costa, por volta das 2h30min da última terça-feira. A causa do acidente pode ter sido o excesso de peso das tinas de água usadas para colocar as sardinhas, mas a Marinha também avalia a possibilidade de uma chapa de metal ter se soltado na proa da embarcação, possibilitando a entrada de grande quantidade de água.
De acordo com alguns sobreviventes, o navio adernou em menos de cinco minutos, e não houve tempo para soltar os oito botes salva-vidas. "Estava no banheiro quando o Tião (Sebastião Azevedo Pires, um dos sobreviventes) avisou a todo o mundo que o barco ‘tava’ virando. Não houve tempo para nada e eu fui direto para a popa do navio. Acho que muita gente não conseguiu escapar porque deve ter tentado pegar algum pertence nas gavetas e acabou ficando lá embaixo. Nessas horas você não pode pensar em nada", conta Rinaldo Marques Ferreira, 46 anos, o Lingüinha.
Outro sobrevivente, João José de Oliveira, o Joca, estava dormindo na hora do naufrágio. Quando o barco virou, ele subiu no casco, onde permaneceu durante duas horas até o barco afundar completamente, por volta das 5h. Joca estava no casco com mais outros colegas: Alain Forteau, Sandro Neves Brito (Grilo), Manoel Peixoto (Badé), Antonio Manoel de Souza (Salsa), Edson José Rodrigues (Edinho), Givaldo Barcelos (Fofão) e Hélio dos Santos. Os sete se jogaram na água e seis deles foram resgatados por um barco da empresa Brasfish, que recolheu 17 sobreviventes.
Segundo Joca, morador do Gradim, o pescador Hélio dos Santos não conseguiu sobreviver. "Estávamos todos nadando e eu vi que o Hélio estava mal, com a boca sangrando. Olhei para os que estavam na frente e quando voltei o rosto para o Hélio ele não estava mais lá. Eu mesmo quase entreguei os pontos. Quando o barco chegou, eu fazia sinal com um bambu que tinha agarrado, e estava quase me afogando. Houve muita gritaria e choro. Foi Deus quem salvou os sobreviventes", contou Joca, que nadou por cerca de uma hora até ser socorrido.Rinaldo Ferreira também foi resgatado pelo barco da Brasfish, mas teve de permanecer boiando no mar por mais de seis horas. Ele estava perto de Tião, Luiz Felipe Machado e do mestre do barco, Manuel José de Souza. Todos foram salvos. "Assim que eu subi no barco, vi um cação passando na água", conta Rinaldo, que mora no Paraíso, em São Gonçalo.
O drama foi ainda maior para quem permaneceu preso no interior do barco depois que ele virou. Givaldo Barcelos ficou duas horas dentro da sala de máquinas antes de atingir o casco. Já o pescador Marcos Antonio de Oliveira, o Xuxa, ficou dentro do alojamento por cerca de quatro horas, com mais quatro companheiros, que não conseguiram escapar. "A água foi subindo e eu disse para o pessoal que iríamos morrer se ficássemos ali. Fui o único que mergulhei para tentar achar uma saída debaixo d’água. Quando cheguei à tona gritei pelos que estavam comigo, mas ninguém respondeu", conta Xuxa, que ainda ficou "alguns minutos" com a mão presa na porta de escape de água por onde saiu. Ele contou que os colegas no alojamento estavam desesperados, chorando e rezando muito.
Sérgio Rodrigues Roncalho, o Dengo-Dengo, também ficou preso no interior do Tunamar por cerca de quatro horas, até conseguir nadar. Três sobreviventes foram resgatados por pequenos barcos. Isaque Goudinho, o Rato, 26 anos, foi o primeiro a chegar em terra. Quando o barco estava afundando, ele conseguiu avistar a Ilha do Farol e nadou por três horas até alcançar as pedras, numa distância de duas milhas (3,2 km) do local do naufrágio. De lá, foi socorrido por um pequeno bote a motor, que o levou até a costa. Rato ainda voltou em outro bote a motor com mais dois pescadores, para resgatar seus companheiros. Eles conseguiram salvar Jorge Roncalho, o Tesourão, e José Idalmiro de Bruno, último sobrevivente a ser socorrido, por volta das 9 horas de terça-feira.
"Só pensava em nadar para me salvar, mas fui o tempo todo falando com Deus, me preparando para morrer. Ainda perto do barco, encontrei uma caixa boiando e dei ela para o Bruno se segurar. Acho que foi essa caixa que salvou ele", diz o sobrevivente, morador de Itajaí (SC), que não quer mais saber de trabalhar com pesca. "Já levei um susto há dois anos, numa tempestade na plataforma de São Sebastião, no litoral do Rio, e quero arrumar outro trabalho".
Isaque fez uma grave acusação. De acordo com o pescador, um navio da Marinha, no cais de Arraial do Cabo, não quis socorrer as vítimas. "Eu avisei para eles quando cheguei e o navio passou todos os sinais aos barcos que estavam próximos, mas não saiu do lugar", reclama.

O Barco. Construído em 1973, em Taiwan, o Tunamar ficou famoso no verão de 1988, quando ainda se chamava Solano Star e foi o responsável pelo despejo de mais de 10 mil latas de maconha no litoral do Rio de Janeiro.
O primeiro dono do Tunamar foi o australiano Geraldton Endeavour, que o comprou em 1973 e colocou seu próprio nome na embarcação. Endeavour permaneceu com o barco durante dez anos, navegando pelos mares da Oceania, e chegou a reformá-lo, aumentando seu comprimento dos 36 metros iniciais para os atuais 44,98 metros.
Em 1987, o barco, rebatizado Solano Star, pertencia a um armador panamenho. Naquele ano ganharia notoriedade com o episódio da maconha. Para fugir de um flagrante, a tripulação do navio lançou ao mar cerca de 14 mil latas da droga, que foram encontradas em diversas praias do litoral fluminense. O Solano Star foi confiscado pela Polícia Federal e leiloado três anos depois. O francês Henry Bueno comprou o barco e quase o transformou em iate.
A malfadada embarcação acabou sendo adquirida pelo polonês Ezbig, dono do Estaleiro Bigmar, na Ilha da Conceição, onde durante cerca de oito meses sofreu adaptações necessárias à pesca do atum.