sábado, 12 de janeiro de 2008

GRAMADO É UMA FESTA


No início de agosto, durante o festival de cinema, Gramado é uma festa.Na chegada ao aeroporto de Porto Alegre, acontece aquilo que você sempre teve certeza que aconteceria um dia. Malas de diferentes tipos, cores e tamanhos passam à sua frente naquela esteira angustiante e nada da sua, verde e preta. Os passageiros do seu vôo pegam contentes suas bagagens e você fica ali, a olhar a enorme caixa de papelão envolta em plástico, que continua a rodar na esteira, sozinha, abandonada, enquanto o dono dela provavelmente deve estar contemplando a sua mala verde e preta na mesma situação, em algum outro aeroporto do país.

Mas você não é o único passageiro sem sorte. Uma senhora distinta, moradora de Porto Alegre e já com duas malas enormes em seu carrinho, reclama indignada no balcão da companhia aérea. A valise com todos os sapatos dela também não apareceu na esteira. Atencioso, o funcionário anota a reclamação e o conteúdo da bagagem: todos os sapatos. Depois vira pra você e pergunta qual o conteúdo da sua mala extraviada, e você responde com toda a sinceridade:

Tudo, a mala continha tudo. Um par de sapatos, as havaianas, o único casaco capaz de protegê-lo do fio esperado em Gramado com alguma eficácia e tudo o mais necessário para um sujeito heterossexual passar uns dias longe de casa.

Ainda atencioso, o funcionário informa que a companhia pagará 50 dólares se a mala só for entregue no hotel no dia seguinte. Se demorar dois dias, a indenização será de 100 dólares, e de 150 se a bagagem só aparecer depois de três dias. E se demorar mais, você pergunta? A indenização máxima é de 150 dólares, ele responde, para depois aconselhá-lo a entrar na Justiça se quiser receber um pouco mais. Você e a senhora deixam o balcão. Ela vai pra casa sem os sapatos e você, vestindo jeans, uma camiseta de malha e a velha camisa social obrigatória em aviões (para evitar acidentes), e munido apenas de um laptop e uma pequena mochila com pasta, escova de dente, desodorante e apetrechos para a prática do jornalismo, pega uma van que o deixará numa cidade estranha onde a temperatura máxima nessa época do ano não passa dos 10 graus.

Na van viajam três caras que falam espanhol e você fica sabendo, ao longo da viagem, que eles são representantes do filme uruguaio no festival. Sujeitos simpáticos, os uruguaios, mas sua preocupação maior é com a esperada queda de temperatura enquanto o veículo sobe a serra gaúcha, então o papo não flui muito, até porque um deles diz ser torcedor do Peñarol, time que vencera o seu na véspera pela Copa Mercosul, por 4 a 3, placar que seria motivo de uma alegria insana na final da mesma competição.

Na chegada a Gramado, uma constatação boa e outra ruim. O filme cubano, primeiro a ser exibido, já acabou faz tempo e você, lógico, não chegou a tempo de assistir. Em compensação, o frio é milagrosamente suportável com a camiseta e a camisa social por cima.

Na manhã seguinte, compras. Uma boa jaqueta de couro, preta, uma suéter cinza de gola rolê (pra economizar no cachecol) e luvas pretas. Você começa a torcer fervorosamente para que sua mala verde e preta só chegue depois do terceiro dia de atraso.

Numa daquelas lojas em que os produtos invadem a calçada e um sujeito anuncia ofertas num megafone, é hora de adquirir um considerável estoque de cuecas e meias, além de umas três camisetas vagabundas, pra ficar embaixo da gola rolê. Pronto, você está de novo preparado para o frio (que daqui a duas noites, quando os termômetros atingirem os dois graus, será um dos maiores de sua vida); e agradece o fato de ser um anônimo em meio às celebridades na cidade, o que lhe dá plenas condições de repetir a jaqueta preta, a suéter cinza, a calça jeans do avião e a botina marrom, também do avião, durante quase todo o festival.

Devidamente agasalhado, você corre atrás do tempo perdido e encontra o diretor do filme cubano, Pastor Vega, para uma rápida entrevista no meio da rua. Ele está acompanhado de parte do elenco, inclusive de uma atriz linda, cubana também, estilo Jeniffer Lopez, um pouco mais baixa e mais magra. E como o seu portunhol está fluindo que é uma maravilha, você faz também umas perguntas desnecessárias para a atriz, só pra constar. Na correria para mandar a matéria a tempo de entrar na edição que está fechando naquele dia, você confia no que um sujeito te disse na noite anterior e bota no texto que o filme de Vega foi ovacionado pela platéia na abertura do festival.

À noite, você conhece o palco principal da festa, um enorme cinema onde artistas, cineastas e produtores de toda a América Latina se encontram. Além dos curtas da programação, o longa-metragem exibido é o filme peruano, Pantaleão e as Visitadoras, em que uma personagem chamada La Colombiana, vivida por uma atriz chamada Angie Cepeda, provoca na platéia masculina aquele silêncio respeitoso, inevitável, toda vez que entra em cena. A Colombiana não está em Gramado, provavelmente para não comprometer o bom andamento do festival.

Mas não faltam na cidade beldades nacionais e internacionais, como a Jeniffer Lopez cubana. Também circulam pelas calçadas sumidades do nosso cinema. Reginaldo Farias, por exemplo, filma tudo com uma pequena câmera. Paulo José é o homenageado do evento e também dá pinta por lá, entre outras celebridades.

Quando você está sentado num boteco, tomando uma garrafa de Brahma já no início da noite, vê passar Hugo Carvana, uma de suas pautas. Sai então atrás dele e pede uma entrevista, que ele marca para o dia seguinte, no galpão de imprensa, o mesmo local onde, horas antes, você estava escrevendo alguma coisa quando, no meio das dezenas de computadores com jornalistas do país inteiro, uma setorista de cinema pergunta para outro, em voz alta e com tom de desprezo incrédulo:

Fulano, quem escreveu que o filme cubano foi ovacionado?

O segundo longa que você assiste é o uruguaio, e logo reconhece o protagonista do filme, no papel de um repórter investigativo, e o gordo que interpreta um fotógrafo engraçado como dois dos sujeitos simpáticos que subiram a serra na mesma van que a sua. Pena que o filme é uma merda. Um policial mal resolvido cheio de clichês, que esvazia a enorme sala de cinema e faz ecoar o ronco do ator cubano parecido com o Jack Black, que dorme escandalosamente ao longo da projeção.

No galpão de imprensa, a entrevista com Hugo Carvana corre tranqüilamente, até que ele avista o organizador do festival, um gaúcho de vasto bigode chamado Esdras, e grita sem cerimônia:

Ô Esdras! Cadê a Colombiana?

O cara fica meio sem graça mas emenda logo, de primeira:

Essa não veio. Mas você viu a cubana?

Os dois trocam olhares de aprovação, o Esdras se despede e a entrevista continua.

Agora já se passaram quatro noites do festival e você dispensa algumas vezes a van para ir do hotel ao centro de Gramado. A caminhada é de uns dois quilômetros mas é agradável, numa estrada que corta a serra gaúcha e tem uma bela vista para este vale verde aí. E o frio ajuda.

Na penúltima noite, você já cumpriu todas as pautas e relaxa na festa promovida pela organização do festival, numa boate da cidade. Não tem muito o que fazer porque, afinal de contas, não conhece ninguém no local, a não ser de vista, da televisão. Então você encosta no balcão em frente à pista de dança e fica observando, e bebendo cerveja.

Nota que o Jack Black cubano, aquele mesmo cara que você viu babando e roncando no cinema, com parte da barriga à mostra, tem com a Jeniffer Lopez cubana, pelo menos naquele momento, uma relação bastante íntima, porque os dois trocam vários beijos na boca no meio da pista, numa cena que, de uma hora pra outra, torna a festa do festival meio chata. Então você, já com seis latinhas na lata, sai à procura de outra festa, de anônimos.

Lembra do lugar perto do seu hotel e, às duas e pouco, ruma pra lá. O local tem um grande balcão de bar, de uns vinte metros, que fica em frente a uma espaçosa pista de dança. E como você não conhece ninguém ali, fica encostado no balcão, observando e bebendo.

Às três e pouco, você já tem dez latinhas na lata e resolve dormir. Chega ao hotel e o plantonista da recepção, que se parece com o Ivo Wortman, lhe estende ela, a mala verde e preta.

Você sorri, agradece, joga a alça no ombro esquerdo e começa a subir a escada até o quarto, até que pára, vira para o recepcionista e pergunta:

Grêmio ou Inter?

Ele responde Grêmio. E você, ligeiramente alto, resolve prestar uma homenagem ao nobre recepcionista que lhe devolveu a querida bolsa verde e preta. E entoa, com o indicador direito erguido sobre a cabeça, os dois primeiros versos do hino gremista, de Lupicinio Rodrigues.

Até a pé nós iremos!
Para o que der e vier!

Depois se cala e retoma a subida para o quarto, abraçado à mala verde e preta.

No início de agosto, durante o festival de cinema, Gramado é uma festa.


Abaixo, a entrevista com o Hugo Carvana.

Revista Istoé Gente, edição 59, de 18 de setembro de 2000


"Às vezes burlava a quimioterapia. Tomava um uisquinho antes de começar o tratamento. Aquilo é um horror, você não pode beber. É um veneno. É você injetar na veia Lubrax 4, óleo de combustível. Só que a gente toma quimio hoje e ela só vai fazer efeito daqui a dois dias. Aí é devastador. Então tomava a quimioterapia e no mesmo dia, à noite, tomava um uísque, porque sabia que ia ficar cinco, seis dias desesperado, vomitando e passando mal. O médico proibia mas eu driblava, e acabou dando certo. O uísque me salvou."
(Foto: Leandro Pimentel)

Hugo Carvana ficou conhecido do grande público na televisão interpretando personagens memoráveis, como o jornalista do seriado Plantão de Notícia, nos anos 80. Mas não esconde de ninguém que sua paixão é o cinema. Nada de surpreendente. Afinal de contas, ele ostenta no currículo 82 filmes, desde a época em que começou como figurante nas chanchadas da Atlântida, durante a década de 50, até os sucessos de Vai Trabalhar Vagabundo, Bar Esperança e O Homem Nu, como diretor. Há três anos tentando captar recursos para seu novo projeto em cinema, batizado provisoriamente de Tempestade Cerebral, Carvana sobrevive com participações em programas de tevê, entre eles o Zorra Total. Em 1996, tirou o pé do acelerador quando descobriu ter câncer de pulmão, curado há três anos. Casado com a jornalista Martha Alencar, o pai de Pedro, 31, Maria Clara, 29, Júlio, 25, e Rita, 22, ainda pretende realizar um sonho antigo: ser dono de bar na Lapa, tradicional reduto da boêmia carioca. Não para ficar administrando o negócio atrás de um balcão, mas para fazer o que mais gosta: "Meu negócio é beber".

Como foi saber do câncer no pulmão logo após o lançamento de O Homem Nu, em 1996?
Quando você descobre que tem a doença é uma porrada. Um soco do Mike Tyson na cara. É uma coisa que você nunca acha que vai lhe acontecer. Só com os outros. Sofri demais no início. Primeiro você tem que chorar. Daí você chora mesmo, não tem jeito. O segundo passo é enfrentar, se informar sobre a doença e procurar as armas para enfrentá-la. É aí que a cabeça do paciente ajuda muito.

De que forma?
A primeira coisa a fazer é não permitir que tenham pena de você, porque a pena dos outros traz mais sofrimento para quem tem a doença. Outra coisa é a fé, não só a religiosa mas a fé na cura. O câncer é uma doença genética, uma célula que enlouquece, que se rebela, pula da cadeia do seu DNA e se recusa a se ordenar. O trabalho psicológico é importante nesse caso. Passei a fazer análise, e isso me ajudou bastante. Soube da doença em outubro de 1996, poucos dias após a estréia de O Homem Nu. Duas semanas depois, houve uma outra sessão de lançamento no Rio e eu não fui. Tinha tomado a primeira sessão de quimioterapia e estava muito deprimido. Estava fraco, não conseguia andar e não queria que ninguém me visse daquele jeito.

E como o Hugo Carvana boêmio resistiu ao tratamento?Às vezes burlava a quimioterapia. Tomava um uisquinho antes de começar o tratamento. Aquilo é um horror, você não pode beber. É um veneno. É você injetar na veia Lubrax 4, óleo de combustível. Só que a gente toma quimio hoje e ela só vai fazer efeito daqui a dois dias. Aí é devastador. Então tomava a quimioterapia e no mesmo dia, à noite, tomava um uísque, porque sabia que ia ficar cinco, seis dias desesperado, vomitando e passando mal. O médico proibia mas eu driblava, e acabou dando certo. O uísque me salvou.

Nem o câncer te fez abandonar o uísque?
Tive que parar de fumar, mas não de beber. Gosto de uma história do Vinícius de Moraes. Ele estava num bar com o Tom Jobim e uma amiga. O Vinícius perguntou aos dois quais os bichos que eles gostariam de ser. O Tom respondeu que queria ser um leão, e a moça disse uma garça. Quando o Tom perguntou que bicho o Vinícius gostaria de ser, a resposta foi imediata. "Uma girafa, porque o uísque ia demorar a descer". Acho que gosto tanto de uísque quanto o Vinícius gostava.

Qual a sensação de ficar curado de um câncer?Tive a notícia da cura em junho de 1997. A porrada que eu recebi quando o médico anunciou minha doença voltou com a mesma força quando soube que estava curado. Aí a porrada é no sentido inverso. Comemorei como de direito. Estou de porre até hoje.

Que privações a doença trouxe?Praticamente perdi um pulmão com a radioterapia, que é outra coisa absurda. Hoje não posso correr e subir escada. Tem que ser devagar. Fumar, só charuto, que não se traga. Mas eu me controlo. De quatro em quatro meses, faço a manutenção. Marco a consulta com o médico e faço todos os exames antes, me monitoro inteiro. Essa nunca mais me pega e, se voltar, eu pego no início. Fiquei o rei do controle.

Como será seu próximo filme?Escrevi uma história de um cantor da noite que viveu no Rio entre os anos 50 e 80.Ao narrar a vida desse personagem fictício, que não é famoso mas muito conhecido entre os amigos e nos bares da noite, viajo pela música brasileira. Perseguia a possibilidade de um dia ter a música não como moldura ou adorno, mas quase como um personagem de um filme. Também é uma forma de homenagear os velhos cantores da noite. Antigamente eu ia num bar só para ouvir gente como Altemar Dutra. Essa gente tinha um público fiel.

Será mais um filme sobre bares, boêmios e a noite?Não é intencional. Só gosto de fazer filmes urbanos, contemporâneos. Gosto de olhar as pessoas, descrever tipos humanos. O ator vive disso, de observar. Então acaba aparecendo. Às vezes até elimino os excessos para o filme não ficar muito boêmio, mas de vez em quando é impossível. Bar Esperança, por exemplo, era a história de um bar, tinha que ter a boêmia e todos os seus personagens.

Ainda é muito difícil fazer cinema no Brasil?Tenho 45 anos de cinema e já vi centenas de crises. Estamos passando por mais uma. A última foi a do governo Collor e agora estamos com essa. Está havendo um esgotamento das leis de incentivo, que estão se tornando ineficazes. Como sempre, o problema é a falta de vontade política. Quem cuida dos setores do governo responsáveis pelo cinema não tem visão da importância do audiovisual brasileiro em termos de difusão da imagem nacional aqui e lá fora.

Por isso a demora de mais de quatro anos para lançar o filme?Estou há três anos tentando captar recursos para esse filme e não tenho mais saco. A dificuldade é tanta que parece que estou fazendo o filme da minha vida, e não é isso que eu quero. Tenho mil idéias na cabeça. Quero fazer esse filme, acabar e fazer outro, porque essa é a minha vida. Fazer cinema no Brasil. Só que estou há três anos me angustiando e correndo.

Dá para viver de cinema no País?Não. Tem que ter sempre uma outra atividade. Eu faço televisão. Não que eu tenha algo contra a televisão, pelo contrário, eu adoro, mas quisera eu poder filmar de dois em dois anos. Um ano escrevendo e montando a engenharia financeira e outro ano filmando. Era meu sonho, mas é impossível. Cheguei aos 63 anos, já desisti de sonhar.

Algum filme pode ser considerado a obra da sua vida?Sou profissional de cinema. Aprendi fazendo, mas não sou um cineasta no sentido de que o cinema para mim é visceral, um instrumento para transformar o mundo ou o homem. Nada disso. Cinema para mim é diversão e prazer, e quero fazê-lo como tal. Posso dizer que tenho um afeto por Vai Trabalhar Vagabundo, porque foi o primeiro que eu produzi e é um filme comentado até hoje. Assim como o Bar Esperança, que virou até bar de verdade em Cuba.

Que história é essa?Em 1986, ganhei o prêmio de melhor filme dado pela União dos Escritores e Artistas Cubanos. No ano seguinte, fui a Havana a convite do poeta cubano Rafael Rey, que de tão apaixonado pelo filme resolveu criar o Bar Esperança lá, que só funciona durante a semana do festival de Cinema de Havana, na sede do Estúdio de Cinema Cubano. Agora eu quero fazer um Bar Esperança no Rio de Janeiro.

Vai virar dono de bar?O governo do Estado do Rio está criando o Distrito Cultural da Lapa e já pleiteei um espaço no projeto. Quero fazer o Centro Cultural Bar Esperança, o último que fecha. Vai ser o bar dos artistas, com espaço para apresentações de cantores, músicos e poetas. Só que não vou ficar com a barriga atrás do balcão. Sempre achei que quem bebe não pode administrar um bar. Estarei lá para receber os amigos e beber, claro.

Hugo Carvana continua boêmio?Minha boêmia agora é outra. Não volto mais para casa às cinco, seis da manhã, mas sou visceralmente uma pessoa de bar, desde um bar sofisticado até o boteco vagabundo. Quem gosta de beber gosta de ser amigo de quem bebe. Não que eu não tenha amigos que não bebam, mas é uma questão de cultura, um ritual. Tenho uma casa em Itaipava, na região serrana do Rio. Chego lá na sexta-feira e vou direto a um bar, onde sei que vou encontrar os amigos, No dia seguinte vou a outro, e encontro outros amigos. Durante a semana também faço isso no Rio, eventualmente. Só que estão botando televisão em bar. Você tá lá conversando e aquele troço ligado. É um absurdo.