terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

HONÓRIO, O GURGEL – A COMPRA


Essa história começa na janela do quarto, no apartamento da infância e da adolescência. Lá embaixo, havia um estacionamento da antiga Telerj, onde ficava um gurgel verde-musgo, daqueles mais toscos, rústico como um jipe, pequeno como um fusca. Ali, aos dezessete de idade, faltava dinheiro pra tudo, quanto mais pra comprar um carro. Então dos sonhos automotivos, o gurgel era o menos absurdo.

O carro ficava no estacionamento quase todos os dias e a imaginação corria solta. Seria graças a ele que os ônibus seriam banidos da rotina diária, e tanto se pensava nisso que aos vinte e quatro, quando juntou-se a grana para comprar um veículo automotor de quatro rodas, o gurgel continuava sendo a primeira opção, ainda que o dinheiro desse para adquirir um Uno ou um Gol dos mais antigos. Talvez até um Monza.

A pesquisa foi bem rápida, até a descoberta de que o único local disponível no Rio de Janeiro para quem quisesse comprar um gurgel era uma loja na Ilha do Governador, comandada por um sujeito chamado Bira. Para garantir uma compra honesta, sem sobressaltos posteriores, chamei o Grego, amigo dos tempos de O Fluminense. O cara trabalhava na época num caderno de automóveis, o que, a meu ver, lhe conferia autoridade suficiente para me deixar tranqüilo.

Solícito, o Grego também deu uma pesquisada, perguntou ao editor do caderno e me veio com uma dica apenas, cabal. O gurgel não podia ter um X desenhado embaixo dele. Se tivesse algo parecido com um X, o carro não prestava, era de um modelo terrível, que só me causaria dores de cabeça e em poucos meses estaria parado, condenado ao ferro-velho.

De posse dessa informação, fomos ter com o Bira, que encontramos depois de alguns percalços pelas ignoradas ruas da Ilha do Governador. No carro do Grego, erramos o caminho umas duas vezes até achar a loja, um prédio raso, de dois andares no máximo, que parecia uma espaçosa casa de família repleta de gurgéis amontoados na garagem. O Bira era calvo, barrigudo e com feições ligeiramente fenícias. Nos recebeu com um sorriso, daqueles dos livros do Asterix. Em pouco tempo, estávamos na garagem do prédio, a examinar os gurgéis disponíveis.

Espertos, malandros, eu e o Grego vistoriamos todos os veículos naquilo que nos interessava. Primeiro ele, depois eu, nunca os dois juntos, nos abaixamos várias vezes, colamos o peito no chão até, para olhar embaixo de cada gurgel. Em sutis confabulações, sob o olhar simpático do Bira, chegamos à conclusão de que X, propriamente dito, não havia em nenhum deles. Estava livre para escolher.

A princípio gostei de um azul marinho, tosco como o verde-musgo do estacionamento da Telerj. Mas o próprio Bira se encarregou de condenar o carro, dizendo que era 83, que o motor não tava legal e que bom mesmo era aquele gurgel cinza, 86, modelo 87 (estávamos em 1996).

O carro tinha umas faixas amarelas e laranjas nos pára-lamas mas era o veículo de melhor aparência da loja. Era também o mais novo e o preço estava só um pouco acima dos demais, coisa de quinhentos reais. Tinha ainda a seu favor o sorriso fenício do Bira, e eu, com a experiência de quem comprava um carro pela primeira vez na vida, resolvi acreditar em tudo isso, não sem antes me certificar de que não faria uma má aquisição.

Então deitei mais uma vez no chão, e dessa vez passei mais tempo a examinar meu futuro gurgel debaixo dele. Não, ali não tinha mesmo nada que pudesse ser confundido com um X. A compra era segura.

Dei o sinal e marquei para pegar o carro na semana seguinte, quando efetivamente voltei à loja do Bira, paguei o restante e saí dirigindo aquele que viria a ser batizado de Honório, o Gurgel, e que, uns oito meses depois, me obrigaria a morrer numa grana em Senador Camará, pra fazer a retífica do motor que vazava óleo por tudo quanto era buraco.

Também nunca consegui registrar o gurgel no meu nome. No ato da compra, não dei a menor importância para questões burocráticas. Queria era a chave, e além dela recebi do nobre vendedor um comprovante de propriedade provisória, que venceria dali a seis meses, e a cópia do documento original do veículo. O original mesmo, aquele verdinho, eu jamais vi. E o mais engraçado, por incrível que possa parecer, é que até hoje eu não consigo me arrepender dessa compra.