quarta-feira, 5 de março de 2008

NIEMEYER NA DIREITA

A matéria era a segunda de uma nova série da revista, que tinha por objetivo resumir a biografia de celebridades de peso em até quatro capítulos, um em cada edição. A recomendação era para conseguir fatos novos, inusitados, da vida dessas pessoas. A mim coube a tarefa de tentar descobrir curiosidades ainda desconhecidas na trajetória desse cidadão aí do lado (na foto do Leandro Pimentel), que na época, aos 95 anos, já tinha sido tema de centenas de reportagens e dezenas de livros.

Era a minha segunda entrevista com ele. Na primeira, uns dois anos antes, tudo correra bem, apesar de um momento tenso, quando resolvi citar uma frase anterior dele, a respeito da importância das mulheres, para tentar conseguir as tais declarações diferentes.

Virei para o renomado arquiteto e lembrei que uma vez, sei lá quando, ele dissera que nada no mundo era mais importante que a mulher, ou algo parecido. Pensei, na minha ingenuidade, que o cara pudesse sair filosofando sobre a mulher e que dali poderia sair algo bom, talvez até um título, mas ele apenas ficou olhando para a minha cara, com a mão na boca, e soltou uma pergunta rápida, seca.

E não é?

Sorri amarelo, concordando, e mudei rapidamente de assunto. Devo ter falado do Fidel Castro (ou do Brizola) e a entrevista seguiu até o fim. Na segunda vez, calejado, não cometi quase nenhuma bobagem, que eu me lembre. Consegui até ouvir de Niemeyer que ele, aos 17 anos, atuou num Fla-Flu com a camisa do Fluminense. Jogou de meia-direita, com a 8 (se na época existissem os números nas camisas), e brincou com a posição, dizendo que deveria ter jogado na esquerda.

Era uma história aparentemente inédita. Pelo menos não tinha visto referência àquilo em lugar algum da pesquisa que fizera antes da entrevista. Depois recorri a um amigo tricolor, meio enciclopédia de futebol, e ele também não sabia nada disso.

No mais, a matéria não teve muitas outras novidades, como era de se esperar. Mas Niemeyer, além de toda a reverência necessária pela carreira, as obras, Brasília, o prestígio internacional etc etc etc, deu a impressão de ser um sujeito boa praça. Elogia o Stálin de vez em quando, mas parece ser um cara legal e ainda contou outra história interessante, essa talvez já conhecida na época.

Foi quando Fidel o visitou na cobertura da Avenida Atlântica, em Copacabana. Por uma dessas extravagâncias da arquitetura, só um dos dois elevadores do prédio dava acesso ao estúdio de Niemeyer, Lá pela meia-noite, quando El comandante resolveu ir embora, o elevador estava parado, desligado. O jeito foi tocar a campainha da cozinha do vizinho, para atravessar o apartamento dele até o outro elevador.

Agora fico imaginando o vizinho, à meia-noite, pijamão, em frente à tevê, pronto pra dormir, quando toca a campainha da cozinha. O cara vai atender achando que é engano ou tragédia e se depara com Fidel Castro, pedindo gentilmente para atravessar o apartamento dele até o outro elevador. Como dizem, Copacabana tem de tudo mesmo.


A matéria abaixo é o primeiro capítulo dos quatro sobre o Niemeyer. Não tem a história do Fidel, que ficou no quarto capítulo, mas também ela acabou de ser contada.

Revista Istoé Gente, edição 216, de 22 de setembro de 2003



Aos 95 anos, o arquiteto guarda na memória o placar daquele Fla-Flu da sua juventude (1 a 1) e a convicção de que, apesar de não ter feito gol, não decepcionou os colegas de time. “Era razoável”, afirma Niemeyer.

A rua Passos Manuel, em Laranjeiras, na zona sul carioca, era íngreme, mas o menino que nela nascera, em 1907, na casa do avô materno, situada no número 26, não se importava. Durante toda a infância e boa parte da adolescência, subia e descia correndo a ladeira de paralelepípedos em animadas partidas de futebol com amigos do bairro. A paixão pelo esporte chegava a livrar o aluno do Colégio dos Barnabistas Santo Antônio Maria Zaccaria da punição tradicional por se comportar mal na classe. Em vez de escrever 500 vezes no quadro negro “não devo falar na aula”, seu castigo era outro. “O professor me proibia de jogar futebol. Era mais eficiente”, lembra o antigo aspirante a craque, que teve seu momento maior no esporte numa tarde de 1925, aos 17 anos.
Convidado por amigos do bairro, envergou a camisa tricolor do Fluminense e, no time juvenil, jogou a preliminar de um Fla-Flu pelo campeonato carioca no estádio das Laranjeiras, próximo à sua casa e então considerado o mais importante do País. Seguir a carreira de jogador, no entanto, jamais passou pela cabeça do rapaz que chegou a recusar um convite do então goleiro titular do Flamengo, Amado Benigno, para ingressar na equipe rubro-negra. Eram tempos de amadorismo no futebol, quando quase todos os atletas eram filhos de famílias abastadas e atuavam por amor aos clubes, sem ganhar um tostão sequer. Seguindo o costume da época, Oscar Niemeyer manteve o futebol como diversão ocasional e optou pela arquitetura, a atividade que o tornaria famoso em todo o mundo.
Aos 95 anos, o arquiteto guarda na memória o placar daquele Fla-Flu da sua juventude (1 a 1) e a convicção de que, apesar de não ter feito gol, não decepcionou os colegas de time. “Era razoável”, afirma Niemeyer, que brinca com a posição em que atuava. “Devia estar na esquerda, mas era meia-direita”, diz, em alusão à conhecida adesão ao comunismo que até hoje faz questão de manter intacta.
Das influências adquiridas na infância, a mais forte foi a do avô materno, Antônio Augusto Ribeiro de Almeida, que hoje batiza a antiga rua Passos Manuel. Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ribeiro de Almeida tinha prestígio e condições financeiras suficientes para dar uma vida confortável às doze pessoas da família que viviam sob seu teto. A característica mais admirada pelo neto Oscar, no entanto, era o desapego ao dinheiro, que fez com que a residência de Laranjeiras estivesse hipotecada na época de sua morte, em 1919, quando Niemeyer tinha 12 anos. “Ele morreu pobre. Não era uma pessoa ligada a dinheiro, o que me fez guardar uma boa lembrança dele”, conta o arquiteto, que morou na antiga rua Passos Manuel até dez anos após a morte do avô e sempre fez constar, no fim de seus livros, o nome Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares embaixo da assinatura pela qual é conhecido internacionalmente. Na certa numa tentativa de preservar as origens portuguesa (Ribeiro e Soares), alemã (Niemeyer) e a mais distante, árabe (Almeida).
A rotina na casa de Laranjeiras era típica de uma família burguesa da época. No sobrado de dois andares, Niemeyer vivia sob as asas dos avós, Ribeiro de Almeida e Mariquinhas, e morando com os pais, Delfina e Oscar de Niemeyer Soares, no andar de cima. Ele e os cinco irmãos (Lília, Carlos Augusto, Leonor, Judite e Paulo) conviviam ainda com os tios Nhonhô e Ziza e a prima Milota. Já na adolescência, Niemeyer mostrava o pouco interesse por assuntos religiosos, que o faria tornar-se ateu convicto, e não ligava muito para as missas celebradas aos domingos na espaçosa sala da casa, organizadas pela religiosa Ziza e onde ressoavam as salve-rainhas rezadas pela avó.
Um pouco mais tarde veio a época em que o jovem Oscar não dispensava as diversões da vida noturna no Rio antigo. Se a influência maior vinha do avô, era o tio Nhonhô, na época diretor do Fluminense Futebol Clube, que o levava a locais como o extinto bar Americano, no centro da cidade, o bar Lamas – até hoje tradicional reduto da boêmia, na zona sul carioca – e a Lapa. O bairro do centro da cidade, com seus cabarés, também era ponto de encontro dos amigos do então estudante do ensino médio, acostumados a passar por lá para tomar uma bebida nos bares. “Ficamos familiares, tanto que íamos durante o dia também, para jogar carta com as moças”, lembra Niemeyer.
Mantido até hoje num canto do escritório do arquiteto, em Copacabana, o cavaquinho é testemunha dos tempos de boêmia. Era nele que Niemeyer tocava os sambas da época, na companhia de um grupo de amigos que se reunia no Clube de Regatas Guanabara, na Praia de Botafogo, e permanece em sua memória. “Éramos eu, Gastão Vida de Cão, Siri e o Barqueiro”, lembra ele, como se estivesse recitando a escalação de uma seleção de futebol e garantindo não ter sido brindado com qualquer apelido na época.
A vida despreocupada durou até o casamento, aos 21 anos, com Annita Baldo, filha de imigrantes italianos de Pádua, perto de Veneza. Sem pompa, nem circunstância, a cerimônia do matrimônio atendeu aos desejos da religiosa noiva, que conseguiu convencer o noivo ateu a casar numa igreja do bairro. “Casei por formalidade. Mais católica do que minha esposa é impossível, então não me incomodei em casar dessa forma”. O casamento foi no mesmo ano da formatura no ensino médio, que marcou o início da vida profissional do futuro arquiteto. Casado, o estudante assumiu a responsabilidade que passou a ter e trocou a boêmia pelo trabalho na tipografia do pai.
Um ano depois, em 1929, ainda ajudava o pai na tipografia quando matriculou-se na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, onde se formaria como engenheiro arquiteto, em 1934. A partir do terceiro ano do curso, o jovem estudante passou a ter duas opções para seguir em frente na carreira escolhida: ganhar um salário qualquer como estagiário de firmas construtoras, como a maioria de seus colegas, ou trabalhar de graça e aprender “o lado bom da arquitetura”, como ele mesmo diz, no escritório de algum renomado arquiteto. Alguém que tinha a admiração de Niemeyer. Alguém com quem ele iria mudar a história do Brasil.