domingo, 13 de abril de 2008

NO TOPO DO MUNDO

Os pulmões já estavam relativamente habituados ao ar rarefeito do Lago Titicaca e resolvemos explorar a esmo, como quem não quer nada, a bela Ilha do Sol, situada em área patrulhada pela valente marinha boliviana. Éramos eu, o repórter do Estadão e a repórter da Folha, muito bonita por sinal, e andamos uns dez minutos da pousada ao povoado.

Só existe encosta na Ilha do Sol, então o povoado, de casas paupérrimas entre as vielas sempre em ladeira, a subir ou descer, tinha lá suas semelhanças com uma favela carioca. As diferenças, porém, eram bem maiores. A começar pela paisagem, muito mais bonita que a do Vidigal, por exemplo, e quem conhece a vista do alto do Vidigal pode até duvidar disso, mas sem razão, se bem que gosto não se discute.

O Vidigal tem uma vista linda mas é favela grande, em região metropolitana, e o povoado da Ilha do Sol é afastado até do principal posto da marinha da Bolívia, que por falta de mar no país só tem mesmo o Lago Titicaca para navegar. E naquele dia, sem ninguém nas ruas ou nas janelas, a não ser um tiozinho desolado numa venda às moscas, o povoado parecia ainda mais distante do resto do mundo.

Até que nos deparamos com o cemitério local (um terreno do tamanho de uma quadra poliesportiva, cercado por um muro de um metro e meio de altura) e entendemos melhor o vazio da “cidade”. Um grupo de sessenta pessoas, talvez a metade da população da ilha, participava de um sepultamento. Algumas estavam paramentadas com aquelas roupas típicas de peruano ou boliviano, poncho colorido, gorro ridículo, flauta de bambu etc etc etc.. E cantavam uns cânticos também, de vez em quando.

Imediatamente, nós três, infatigáveis na busca pela notícia, empunhamos nossas máquinas fotográficas, de longe, mas o suficiente para chamar a atenção de pelo menos um sujeito entre os que acompanhavam o enterro. O cara era um dos que estavam vestidos com roupas típicas, e partiu na nossa direção a fazer gestos com o braço erguido, para que saíssemos dali, e a gritar impropérios em língua de índio.

Achamos melhor seguir o sábio conselho daquele boliviano místico. Desistimos de fotografar a interessante expressão da cultura andina e, quando já estávamos a uma distância segura do cemitério maldito, ele apareceu. Tinha um metro e vinte de altura, se tanto, e antes que disséssemos qualquer coisa mandou direto, na lata:

Vocês querem conhecer o topo do mundo?

Ao perguntar isso, ergueu o indicador, ficou na ponta dos pés e acentuou a segunda sílaba do el-TÔ-po-del-mun-do. Falou em espanhol, claro, língua que na verdade é um estado de espírito, como costuma dizer o Nobre Guevarista. E foi um alívio escutar algo diferente vindo de uma criança da região, depois de alguns dias ouvindo somente a palavra “propina” da boca de menininhos muito fofinhos, que viviam fantasiados com poncho e gorro, às vezes até com filhotes de lhama no colo, e que cobravam para se deixarem fotografar pelos turistas, incentivados por pais certamente muito zelosos.

O garoto da Ilha do Sol não estava fantasiado. Vestia calça e camisa normais e um chapéu de pano, item obrigatório a três mil e oitocentos metros de altitude, o que só fui perceber quando meu nariz já estava bem mais vermelho do que o desejável. Ele também não pediu propina. Em vez disso, nos fez a tal oferta irrecusável.

Atrás do moleque de seis anos, partimos no trajeto até o ponto culminante da ilha, coisa pouca, nada a ver com a Cordilheira dos Andes. O ponto mais alto da Ilha do Sol é só um morro um pouco maior que os demais, chão de terra, sem neve. Pra subir foi tranqüilo, ainda mais aos vinte e sete anos. Paramos um pouco pra respirar durante a subida, umas duas ou três vezes, e chegamos ao topo sem maiores dramas, a não ser um ligeiro cansaço, óbvio.

E lá em cima, a poucos metros do garotinho sorridente, contemplei talvez a paisagem mais bonita que eu já vi. Descrever aqui, não dá. Só dá pra dizer que tinha o Lago Titicaca com água límpida, da cor da camisa da Itália de 82, tinha um céu liso, azul toda vida, e tinha a Cordilheira dos Andes, que em determinados pontos parecia pairar sobre umas nuvens rebaixadas, tipo um Olimpo do terceiro mundo. Num lugar daquele, acho que até Lênin pensaria em Deus.

Ficamos lá em cima por quase uma hora, até voltarmos atrás do pequeno boliviano, que, claro, queria alguma grana pelo serviço. Não tava ali à toa. Mas ao contrário de seus contemporâneos de Cusco e adjacências, o garoto da Ilha do Sol não nos abordou com o pedido imediato, e nem repetiu chorosamente a palavra “propina” dezenas de vezes sem parar. Ofereceu primeiro um serviço, no caso uma vista deslumbrante, inigualável, e depois foi pago.

Nos despedimos deixando com ele duas moedas de 1 Boliviano – o que na época deveria dar pra duas barras de chocolate, das grandes – e ainda conhecemos a irmã caçula dele, menina de uns quatro anos, também sorridente e também de chapéu.

E o moleque, que já tinha ganhado nossa simpatia de cara, só pelo contraste com o inca ameaçador do cemitério, subiu mais ainda no conceito quando, mal a irmã chegou ao lado dele, estendeu a ela uma das moedas. E a menininha saiu correndo, feliz, na direção da venda do tiozinho desolado.


Abaixo, o texto de abertura da matéria para o caderno Viagem, do JB. E a coordenada do Lago Titicaca:

Jornal do Brasil, edição de domingo, 16 de maio de 1999

Enquanto os astecas e maias se instalaram em regiões de vegetação plana do México e da América Central, os incas preferiram começar a viver às margens do Titicaca, na fronteira entre o Peru e a Bolívia. Com seus 8.300 quilômetros quadrados e situado a 3.810 metros de altitude, o Titicaca é o lago navegável mais alto do mundo. O ar rarefeito mantém a temperatura da água entre os 4 e 16 graus, o que impede o congelamento mesmo no inverno.

Mergulhar na cultura dos povos pré-colombianos sempre é uma viagem interessante, seja pelo aspecto histórico ou pelo esoterismo ligado a incas, astecas, maias, seus ancestrais e descendentes. Quando a tudo isso se une paisagens naturais deslumbrantes, a viagem se torna ainda mais irresistível. Nesse quesito, os maias e astecas que nos perdoem, mas os incas tiveram um bom gosto insuperável ao escolher os lugares onde viver.
Nada melhor para comprovar essa tese do que percorrer os centros arqueológicos do Peru e da Bolívia, passando por Cusco (a capital do Império Inca) e a badalada Machu Picchu, além das ilhas do Sol e da Lua, no lado boliviano do Lago Titicaca, considerado o berço da civilização que dominou a América do Sul durante 300 anos, até a chegada dos espanhóis.
Enquanto os astecas e maias se instalaram em regiões de vegetação plana do México e da América Central, os incas preferiram começar a viver às margens do Titicaca, na fronteira entre o Peru e a Bolívia. Com seus 8.300 quilômetros quadrados e situado a 3.810 metros de altitude, o Titicaca é o lago navegável mais alto do mundo. O ar rarefeito mantém a temperatura da água entre os 4 e 16 graus, o que impede o congelamento mesmo no inverno.
Não satisfeitos com a beleza do lago sagrado, os incas ocuparam ainda as regiões montanhosas do Peru. Em Cusco, a 3.399 metros de altitude, fundaram sua capital e, seguindo o fluxo do Rio Vilcanota – que serpenteia as montanhas da região até se transformar em Urubamba, para desaguar no Ucayuli, primeiro nome do nosso Amazonas –, chegaram ao local onde hoje se encontra Machu Picchu, a 2.350 metros de altitude. Complementando a paisagem deslumbrante, a Cordilheira dos Andes é o cenário de fundo perfeito, tanto na Bolívia quanto no Peru.
Para evitar problemas com a altitude, o mais aconselhável é que a ordem cronológica da criação do Império Inca seja deixada de lado, e que a viagem comece pelo Peru. Mesmo com seus quase 3.400 metros de altitude de altitude, Cusco é bem mais suportável do que La Paz, a capital e principal porta de entrada da Bolívia, cujo aeroporto (El Alto) fica a 4.100 metros acima do nível do mar. O modo mais fácil de iniciar a viagem é chegando de avião em La Paz. O melhor a fazer, porém, é seguir para Cusco no dia seguinte, também de avião, depois de uma noite regada a goles de chá de coca para diminuir a dor de cabeça, a tonteira e a falta de ar.
Ninguém precisa se assustar com o remédio usado contra a altitude. A única coisa em comum entre o chá e a cocaína é a polivalente folha de coca, que na Bolívia e no Peru é usada até para se ler a sorte, pelos bruxos locais. O chá de coca não é droga e, pelo menos na Bolívia, é quase tão presente quanto o nosso cafezinho.
Na chegada a Cusco, a tendência é que os efeitos da altitude não causem mais tanto mal-estar. Sem dor de cabeça e menos tonto, o turista pode aproveitar melhor os encantos da cidade que mistura a cultura inca com o estilo colonial de algumas de suas construções, erguidas pelos espanhóis. Perto dali, uma grande variedade de ruínas satisfaz os mais famintos por cultura e esoterismo.
Além de todo o valor histórico e cultural dos locais visitados, a paisagem é inesquecível. O trajeto que liga os centros arqueológicos passa por uma estrada à beira do Vale Sagrado dos Incas, o Ccorao. O cenário é composto por uma seqüência interminável de montanhas, inacreditavelmente verdes, que têm o Rio Urubamba a seus pés.
Na volta à Bolívia, o roteiro inclui passeios pelo Lago Titicaca, com direito a pernoite na Ilha do Sol, e uma passagem por Copacabana, uma minúscula cidade na margem do lago que se orgulha de ter dado origem ao nome do bairro da zona sul carioca.

O Lago. A altitude pode até atrapalhar um pouco, mas os encantos da parte boliviana do Lago Titicaca compensam qualquer mal-estar. Brindados com as ilhas do Sol e da Lua, os bolivianos souberam muito bem explorar turisticamente os 45% que lhes cabem do lago (os outros 55% pertencem ao Peru). Um bom exemplo disso é o Inca Utama Hotel, que montou uma estrutura incluindo museus, as inevitáveis lhamas e até personagens reais da história local.
A beleza do Titicaca – com a Cordilheira dos Andes ao fundo –, por si só já seria suficiente para satisfazer qualquer um. As belas paisagens, porém, podem ser esquecidas por alguns instantes, pelo menos para breves mergulhos na cultura e na história locais. O Museu do Altiplano, no Inca Utama, resume a história dos povos da região, desde os Tiwanakus, que começaram a viver em 1.580 A. C., até os incas. Por ali mesmo, outro museu mostra todo o mundo místico dos kallawayas, povo andino especialista em medicina natural.
O museu também abriga os irmãos Demétrio e José Limachi, especialistas na construção das balsas de totora (a palha local). Os dois moram por ali e ganham a vida posando para turistas e vendendo miniaturas dos barcos que fabricam em tamanho natural. Foram esses barcos que serviram para expedições como a Ra II, de 1970, quando pesquisadores cruzaram o Oceano Atlântico, de Marrocos até Barbados, para provar que os polinésios eram capazes de viagens desse tipo há muito mais tempo que os europeus.
Legítimo representante dos Urus, povo que vive em ilhas flutuantes feitas de totora, no Titicaca, Demétrio Limachi se orgulha de seu feito. “Isso é bom para manter nossa cultura”, afirma. Além da Ra II, os irmãos Limachi construíram embarcações para outras três expedições..
Mas o melhor da Bolívia é mesmo o Titicaca, a Ilha da Lua e a Ilha do Sol. Saindo de Huatajata, a viagem pelo lago sagrado dura cerca de uma hora e meia. Habitada atualmente por cerca de 80 pessoas, a Ilha da Lua conserva ainda parte das ruínas de Aljjawasi, construída entre 1.300 e 1.400 D.C.
O lugar servia de claustro para jovens virgens incas, trazidas de diversas regiões para aprenderem as atividades femininas da época. Ao contrário de outras ruínas, esta não foi destruída pelos espanhóis, mas sim pelos próprios bolivianos, que em 1949 começaram a construir prisões (já desativadas) para presos políticos com as pedras incas.
Famosa por ser o local de nascimento da Civilização Inca, a Ilha do Sol também conserva ruínas, como a de Pilkokaina, conhecido popularmente como Palácio dos Incas. Segundo pesquisadores, o palácio era um lugar de trabalho e de moradia, acessível a poucos escolhidos. A Porta do Sol, na entrada da ilha, é outra atração local.
Tanto na Ilha do Sol quanto na da Lua, a população mantém uma prática que também é comum no Peru: em qualquer local de concentração de turistas, adultos e crianças desfilam vestidos a caráter, com todos os ponchos e gorros andinos a que têm direito, e cobram uma gorjeta para posar nas fotos.