sexta-feira, 18 de abril de 2008

ROMÁRIO

Quando se tinha treze anos, ainda mais em 1985, poucos programas eram mais atraentes do que passar a tarde de sábado na casa do amigo que tinha alugado duas máquinas de fliperama. A não ser que, já na casa do amigo, no meio da segunda corrida de auto-pista – entre uma batida na traseira de um retardatário e algumas derrapadas no gelo –, aparecesse o primo mais velho dele, com duas cadeiras cativas do Maracanã, e perguntasse quem queria ver Vasco e Bangu.

Poucos minutos depois, mãe devidamente avisada pelo telefone, estávamos no vagão do metrô, eu e o primo do amigo, o magnânimo Guimba, rumo à linha dois.

O Bangu era time grande. Disputou até final do Brasileiro naquele ano e tinha no elenco, além de Mococa e Gilson Gênio, um sujeito chamado Mauro Galvão, que viria a gritar Casaca embaixo da Libertadores, no centenário. O Vasco não ganhava deles há três anos e nada mudou depois daquele 1 a 1. Tomamos 1 a 0 no início do segundo tempo, Vítor contra, se não me falha a memória, e empatamos uns quinze minutos depois, num gol que talvez seja o mais repetido na história do futebol mundial.

Roberto Dinamite, nosso artilheiro maior, veterano, cabelo branco, enfia com açúcar da meia-lua pra dentro da área, lado direito da defesa, e um garoto recém saído dos juniores, que despontava como artilheiro da Taça Guanabara na quarta ou quinta rodada, surge em diagonal da esquerda e... Bem, aí o goleiro sai, o cara toca de bico, de direita, a bola morre no canto, meio devagar, suave, aquela coisa toda que já virou banalidade há algum tempo.

Só no ano passado, quando o Romário estava para fazer o milésimo, é que percebi, examinando a listagem dos gols, que aquele contra o Bangu tinha sido o primeiro dele no Maracanã como profissional. E como sou dado a atitudes nada racionais quando o assunto é futebol, e estava satisfeito com o fato de vê-lo com a camisa do meu time de novo, no fim da linha, resolvi que teria de assistir também, in loco, o último gol dele no Maraca. Não porque o cara surgiu para o futebol na Colina Histórica, nem porque ele, além da Copa de 94, foi fundamental na conquista de outro tetra, esse restrito aos torcedores de um determinado time, que vem a ser também o primeiro campeão continental do planeta.

Depois de Pelé, Romário foi o único jogador que realmente transcendeu quaisquer paixões clubísticas. Dentro de campo, foi unanimidade, motivo de clamor popular pelo menos até os 36 anos de idade, como mostra a matéria lá embaixo. Ninguém implicou com seu peso, ninguém jamais colocou em dúvida sua capacidade em jogos decisivos, ninguém o chamou de foca de circo e, principalmente, ninguém tem guardada na memória uma falha capital dele que tenha decidido campeonato ou eliminação em Copa do Mundo. E mesmo quando começou a ser criticado não apenas por seu comportamento fora das quatro linhas, dos 37 em diante, o cara ainda calou a boca de muita gente.

Foi artilheiro do Campeonato Brasileiro aos 39 anos (depois de ter sido aos 35) e na busca pelo milésimo, aos 41, fez 13 gols em 13 jogos até chegar ao objetivo maior. E fez tudo isso com a camisa do Vasco, graças a Deus. Romário já reconheceu algumas vezes que São Januário é sua casa no futebol, beija a mão de Pai Santana e é chamado de filho pelo roupeiro Severino. Também cansou de enaltecer a tradição e a força da camisa vascaína em entrevistas antes e depois de jogos, mas jamais declarou amor à Cruz de Malta. Flertou com os inimigos algumas vezes – em passagens sem títulos significativos pelo carcomido gramado da Gávea e pelo extinto estádio das Laranjeiras – e de vez em quando, instado por perguntas capciosas de uma mídia parcial, enaltece a torcida de determinado time, tida como a maior do Brasil, só pra manter a popularidade em alta. Mas sempre afirmou torcer pelo América. Jogada de mestre. Com isso angariou a simpatia de uma cidade inteira e de todo o país, apesar de alguns jornalistas de determinado estado acharem, até 1994, que Müller era melhor que ele, assim como pleiteavam a entrada de Zetti no lugar de Taffarel. Opiniões bastante estranhas, que só o bairrismo exacerbado pode explicar.

Roberto era chamado de velho e botinudo (vejam que absurdo) por torcedores rivais. Zico era bichado. E amarelão, claro. Edmundo às vezes ouve o coro nada agradável de as-sas-si-no e Renato Gaúcho cansou de ser brindado com ofensas colocando em dúvida sua propalada masculinidade. Romário, que eu me lembre, jamais ouviu coros dessa natureza.

Iludidos pela competência marqueteira do cara, os flamenguistas realmente acreditam que ele é rubro-negro, e não o vaiaram nem quando tomaram de cinco do maior rival, com três gols dele, o que já aconteceu duas vezes, uma delas numa final. O cara até deve ter sido xingado num jogo ou outro, mas nunca com aquela vontade de chicotear alguém, que de vez em quando pinta na arquibancada do Maraca. As torcidas o respeitavam, todas o tratavam com deferência. Todas, menos uma.

Romário virou unanimidade mundial em 1994, depois de despontar na Europa pelo PSV da Holanda e ser contratado pelo Barcelona. Antes disso, passou oito anos em São Januário, dos 14 aos 22. A torcida vascaína o conhece desde moleque. Na decisão de juniores de 84, ele meteu três em dois jogos contra o Flamengo e o Vasco foi campeão. No ano seguinte, entrou nos profissionais para só sair em 88, bicampeão carioca, em duas finais contra o Flamengo.

Nesse tempo foi tratado primeiro como promessa, depois como artilheiro dos mais competentes, mas nunca como intocável.Chegou a ser sacado do time no intervalo de uma final de campeonato, numa das maiores burrices da história do futebol. E quando voltou ao Brasil para defender as cores de Exu, foi tratado como deveria, mesmo que com a camisa rubro-negra tenha amargado dois vices no ano do centenário do clube, quando eles não ganharam nada (ou melhor, ganharam uma Taça Guanabara).

A torcida do Vasco, então, passou a ser a única que de vez em quando o xingava com aquela vontade de dar uns tapas. O coro “Ei! Romário! Vai tomar no ...” foi entoado algumas vezes em arquibancadas cruzmaltinas, inclusive quando ele vestia a camisa bicampeã sul-americana. Discordo disso, mas torcedor sabe como é, né? Geralmente não raciocina muito.

Romário é ele e mais ninguém. Pensa nele antes de tudo e escolhe suas declarações de acordo com seu interesse. Dentro do campo, foi o maior jogador de futebol brasileiro que a geração nascida de 68 pra cá viu atuar. Superou Pelé em número de gols marcados em jogos oficiais, o que o torna, oficialmente, o maior artilheiro de todos os tempos. E se Pelé virou Deus nos gramados e comete tantas estultices fora dele, porque Romário seria diferente?

Por isso não xingo o cara nem me importo muito com o que ele fala. Fico com os atos, no caso o que ele fez dentro do gramado com a camisa dos times em que atuou. Com a camisa do meu time, Romário conquistou um campeonato brasileiro, dois estaduais, três Taças Guanabara e duas Taças Rio. Foi também artilheiro em quase todas as competições e, pra arrematar, fez três gols na maior virada da história do futebol, na decisão da Mercosul de 2000.

Por tudo isso, vinte e dois anos depois daquele jogo contra o Bangu, tava lá no Maraca quando ele fez seu último gol no estádio, contra o Flamengo, num jogo em que a torcida adversária saiu celebrando seu goleiro após a derrota por 3 a 0. Fui também a São Januário, uns setenta dias depois, para testemunhar das sociais o último gol da carreira do cara.

Ele já tinha feito um, de pênalti, e o Vasco ganhava do Grêmio por 2 a 0. No finzinho do primeiro tempo, o meio-campo vascaíno puxa um contra-ataque e de pé em pé a bola sobra para Romário, desmarcado na marca do pênalti e de costas para o gol. Ele domina, gira o corpo e toca rasteiro, suave, na saída do goleiro Galato. Durante essa jogada, antes de a bola chegar aos pés de Romário, parte dos refletores de São Januário se apagou.

A matéria abaixo foi assinada também pelo Eduardo Minc, que apurou muita coisa. O Romário não quis dar entrevista na época. Tivemos de dar nosso jeito pra conseguir as aspas dele

Revista Istoé Gente, edição 145, de 13 de maio de 2002


“Já passou, vida que segue. Não tá nada perdido. Meu nome já tá na pedra.”
(Foto: Marcelo Theobald)

Na segunda-feira 6, o atacante Romário, 36 anos, acordou cedo na casa da mãe, Lita, em São Conrado, no Rio. Foi à praia, voltou meio-dia e dormiu um pouco mais. Antes de retornar ao quarto, tomou uma xícara de café e, reparando na ansiedade dela, disse: “Mãe, não fica muito entusiasmada que é certo que eu não vou estar nessa lista”. Duas horas depois, o anúncio dos 23 convocados pelo técnico Luís Felipe Scolari para disputar a Copa do Mundo confirmou a previsão do artilheiro vascaíno. Apesar do clamor popular que fez com que até o presidente Fernando Henrique Cardoso pedisse sua convocação, o segundo maior goleador da história do futebol mundial, atrás apenas de Pelé, ficou de fora da seleção brasileira.
Autor de 835 gols na carreira e campeão da Copa de 1994, quando foi considerado o melhor jogador do mundo, Romário deixou a casa da mãe e foi visitar o pai, Edevair, que ouviu do filho: “É, pai, não tem jeito, o homem (Felipão) tem bronca de mim”. À noite, foi à pelada no Clube Caça e Pesca, na Barra da Tijuca. O jogo, que começou às 21h e durou 40 minutos, terminou 7 a 6 para o time de Romário, que fez dois gols. Depois, passou na churrascaria Pampa Grill, também na Barra. Lá foi aplaudido ao chegar, jantou e ficou até meia-noite e meia. O atacante estava triste, mas tranqüilo. Na mesa com amigos como o fisioterapeuta Fernando Lima, o Zé Colméia, ele disse: “Não importa se estou fora dessa seleção do Felipão. O importante é que estou na seleção do povo”.
Calado, apenas concordou com a cabeça quando os amigos disseram que o erro foi terem dado todo o poder a uma pessoa só, referindo-se a Scolari. “Ele disse que não tem nada contra o Felipão e não entendia porque não era convocado, só queria fazer gols com a camisa da Seleção”, contou o economista Hélio Calvano, 54 anos, que estava na churrascaria.
A tristeza de Romário afetou os filhos. Para Moniquinha, 12, e Romarinho, 8, o clima é de velório. “ A Moniquinha falou com o pai na noite de segunda-feira, pelo telefone, e chorou depois que desligou. Ela só conseguia perguntar por que ele não tinha sido convocado”, contou Mônica Santoro, 31 anos, ex-mulher de Romário. Romarinho ficou calado quando soube. Mas depois mostrou que isso não abalou sua convicção. “Não tem importância. Meu pai ainda é o melhor do mundo”, disse à mãe.
Artilheiro e campeão por todos os clubes que passou – desde o início no Vasco, passando por PSV da Holanda, Barcelona, Flamengo e a volta ao clube que o projetou –, o goleador coleciona polêmicas. Na Copa de 1994 nos Estados Unidos, teve um caso com a modelo Andréia Oliveira, que detonou sua separação da primeira mulher, Mônica. Casado hoje com Danielle Favato, mãe da filha Danielinha, vive sob rumores de nova separação, nunca confirmada.
Oficialmente mora com a mulher na cobertura do condomínio Varandas da Barra. É um dos bens de seu patrimônio. Ele tem dois apartamentos no condomínio Golden Green, onde um imóvel vale até R$ 2 milhões, e um apartamento em frente à praia da Barra, em que mora a ex-mulher. Possui ainda um prédio de quatro andares na Vila da Penha. Dono de um Porsche vermelho, uma caminhonete Mercedes e um Audi A4, Romário emprestou R$ 9 milhões ao Vasco para cobrir dívidas. E o valor do contrato com a Coca-Cola é guardado a sete chaves.
A ausência na Copa não é a primeira decepção. Em 1996, ficou fora do time de Zagalo para as Olimpíadas de Atlanta. Dois anos depois, foi cortado, por contusão, dias antes da estréia na Copa da França. A última frustração foi em 2000, quando Vanderlei Luxemburgo não o chamou para as Olimpíadas de Sydney. Dessa vez, Felipão admitiu que deixou de chamar Romário não só por questões táticas. Segundo o técnico, contribuiu o fato de o atacante ter disputado amistosos do Vasco no México. Na época disse que faria uma cirurgia no olho para ser dispensado da seleção que jogaria a Copa América na Colômbia, em julho de 2001. "Romário não foi à Copa América porque o próprio Felipão o dispensou”, desmente o presidente do Vasco, Eurico Miranda.
Outro motivo para a decisão do técnico da Seleção teria sido uma indisciplina do artilheiro em Montevidéu, quando a seleção estava concentrada para o jogo contra o Uruguai pelas eliminatórias. Segundo um empresário ligado a Felipão, o treinador perdeu a confiança em Romário porque o craque, mesmo sem sair do hotel onde a seleção se hospedara, teria passado a noite com uma aeromoça na antevéspera do jogo, realizado no dia 1º de julho. A tripulação do avião que levou o time se hospedou no mesmo hotel. Na véspera da partida, Romário foi o único ausente da entrevista coletiva concedida pelos jogadores.
Amigos de Felipão, como o presidente de honra do Grêmio de Porto Alegre, Fábio Koff, acham que o craque não vai à Copa por opção tática. “O futebol do Felipe é coletivo, e o Romário não se ajusta a isso”, disse o cartola, que sempre almoça com o treinador. “Ele só me pedia para não falar do Romário nos almoços.” Mas não faltou quem tentasse mudar a opinião de Scolari. Um empresário ligado a Ricardo Teixeira garante que o presidente da CBF sugeriu que o craque fosse à Coréia ao
menos como reserva “para atender ao apelo popular”. Já Eurico Miranda tem certeza de que Antônio Lopes – técnico que lançou Romário como profissional do Vasco, em 1985, e hoje é coordenador da seleção – é a favor da convocação. “Não digo as sugestões que dei porque isso é uma questão interna. Fico com a decisão da comissão técnica”, disse Lopes. Romário já disse a amigos que agora só quer buscar o milésimo gol. A quem não conseguia controlar a revolta, como o empresário e amigo Luizinho Moraes, o craque deu seu recado. “Já passou, vida que segue. Não tá nada perdido. Meu nome já tá na pedra.”