quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A FUTURA GOVERNADORA

Ela era negra, pobre e favelada. Virou vereadora, depois deputada, e quase foi prefeita do Rio, mas perdeu de virada para César Maia, naquela que foi a primeira grande vitória eleitoral do prefeito mais longevo da cidade na história recente. A popularidade, no entanto, foi suficiente para que Benedita da Silva se tornasse a primeira mulher negra eleita senadora e, quatro anos depois, garantisse a vaga de vice-governadora na chapa vitoriosa de Garotinho, nas eleições de 1998. A entrevista aconteceu quando ela estava prestes a se tornar a primeira governadora da história do Rio de Janeiro, mas Benedita minimizava o fato. Dizia que feliz, mesmo, ela ficaria se vencesse as eleições para o governo, dali a sete meses. Acabou perdendo no primeiro turno, para outra mulher, e terminou sua curta experiência no Palácio Guanabara com a desagradável marca de ter deixado de pagar o décimo terceiro salário dos servidores, entre outros problemas. Acusou o antecessor de ter deixado a bomba estourar na mão dela. Pode até ser, mas também a digníssima governadora não soube se cercar de bons quadros no governo. Na Secretaria de Fazenda, por exemplo, botou uma raposa, que graças aos meandros de nossa política estadual conseguiu se colocar novamente, dessa vez no galinheiro instalado no saudoso Vasco da Gama, hoje transformado em covil de aproveitadores com o beneplácito da mídia que sempre odiou o clube. Mas é claro que a Benedita, eleita agora deputada federal, com pouco mais de 60 mil votos, não tem nada a ver com isso.

Abaixo, a entrevista

Revista Istoé Gente, edição 136, de 11 de março de 2002

"Sei muito bem quando estou sendo vítima de um preconceito e quando estou sendo vítima de uma disputa. Você vê isso na medida em que vai galgando posições. É um preparo constante de saber reagir. O que não pode é entrar numa paranóia de achar que essa ou aquela ação são preconceituosas."

Ela nasceu na favela da Praia do Pinto, no Rio, cresceu e morou 57 anos no Morro do Chapéu Mangueira, no Leme, zona sul carioca, só entrou na faculdade aos 40 anos e hoje, prestes a chegar aos 60, se prepara para ser a primeira mulher a governar o Estado do Rio de Janeiro. Na expectativa de substituir o governador Anthony Garotinho – que deverá licenciar-se do cargo em abril, para disputar as eleições presidenciais – a vice-governadora Benedita da Silva terá nove meses para mostrar serviço. Sem tirar os pés do chão, Bené transfere os louros de seu sucesso ao trabalho coletivo do PT. Mas, candidata ao governo estadual nas próximas eleições, avisa que não vai esconder a satisfação pessoal se ganhar a disputa. A ex-empregada doméstica, que já se destacava em organizações como a Associação das Mulheres do Chapéu Mangueira e a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro, começou na política em 1982, como vereadora. De lá para cá, foi deputada federal duas vezes e senadora. Nada que fizesse a mãe de dois filhos e avó de quatro netas deixar a família de lado. Viúva duas vezes, faz questão de, quando tem tempo, preparar a comida do marido, o ator Antônio Pitanga.

É uma vitória pessoal assumir o governo do Estado do Rio, mesmo por nove meses?
Nem pensar. A vitória se deu quando fomos eleitos. Governar nove meses é um desafio grande para o PT. Foi o PT, junto com o povo do Rio de Janeiro, que me elegeu para representá-lo nesse momento. A vitória é resultado de um trabalho coletivo.

Nem uma ponta de orgulho? Nem quando foi eleita para o Senado (Em 1994, foi a primeira mulher negra eleita senadora, com 2,2 milhões de votos)?
A vitória nunca pode ser atribuída unicamente aos seus méritos. Na política há outros componentes que formam esta constelação. Na eleição para o governo estadual, a vencedora foi a política de aliança (Benedita foi vice na chapa do governador Anthony Garotinho, na época ainda no PDT). Quando saí senadora, o PT não tinha representação no Senado no Rio. Foi para fortalecer o partido que saí candidata. Nunca coloco essas vitórias como um patrimônio da Benedita.

E qual a sensação da Benedita mulher quando a candidata vence?
Como representante dessa política, fico muito feliz quando sou vitoriosa. E quando perco, como nas disputas para a prefeitura do Rio (Benedita perdeu em 1992 e em 2000 para César Maia), tenho que administrar. Quando se ganha, a vitória é de todos. Mas quando se perde, a derrota é só sua. A política me deixa na posição de assumir o governo por nove meses. Agora é só complementar esse período e disputar para ganhar o governo do Estado do Rio de Janeiro. Quero ser governadora eleita. Aí pode ter certeza que vou ficar muito contente.

Frei Betto disse que nove meses é muito tempo e que dá para fazer até gente. O que acha?
Concordo. Só que neste caso será um parto prematuro. Terá menos de nove meses.

A senhora vai morar no Palácio Laranjeiras (residência oficial do governador do Rio)?
Essa não é uma decisão colocada como prioridade. Mas, se necessário for, morar mais perto é sempre melhor do que morar longe. Moro em Jacarepaguá (Zona Oeste do Rio), mas não tenho dificuldades em chegar no horário. Mas é de domínio público que o palácio é um espaço para o governador. Nesse caso, poderá ser um espaço onde a governadora estará.

Imaginava chegar onde chegou quando começou na política?
Nunca passou pela minha cabeça que eu pudesse sequer ser candidata a vereadora em 1982, mas minha história política vem da base. Até as universidades que fiz – sou formada em Serviço Social e Estudos Sociais – foram em função da luta que travava. Não nasci em berço de ouro, mas acredito que a inteligência e a sabedoria vêm de Deus, da natureza do ser humano. O segredo é como aproveitar essa inteligência na adversidade.

Que característica marcou sua trajetória na política?
Sempre fui muito modesta. Ser modesto não significa que você não seja ousado. Às vezes os colegas me acham fria diante de uma boa notícia, mas não é isso. Sou calorosa, mas vivo cada dia, porque se carrega um peso grande na hora em que as coisas não dão certo. Não sou de soltar foguetes antes e muito menos de ter o passado como a impossibilidade do presente. Tem gente que olha para trás e não consegue avançar, porque o passado foi ruim. Tenho o passado como uma grande lição. No presente vou preparando um futuro, que na política sempre é projetado, mas que na minha cabeça depende muito do hoje, porque você sai de casa e não sabe o que vai acontecer. Posso ter sonhos, mas nada que me faça regozijar por algo que ainda vai acontecer. Parece frieza, mas não é. Tenho o pé no chão.

Sua ascensão política representa uma quebra de preconceito?
O preconceito racial brasileiro é gritante, mas você não pode assimilar isso diante dos desafios. O preconceito não é meu, é de quem tem. Cabe a mim seguir em frente e mostrar que é possível a convivência com as diferenças e construir um mundo de paz. Estamos perto de grandes vitórias nessa área, e não falo só de negros e indígenas. Se somamos no Brasil uma maioria de não brancos, então isso vai ser bom para todo mundo.

A senhora já sofreu preconceito na política?
Sei muito bem quando estou sendo vítima de um preconceito e quando estou sendo vítima de uma disputa. Você vê isso na medida em que vai galgando posições. É um preparo constante de saber reagir. O que não pode é entrar numa paranóia de achar que essa ou aquela ação são preconceituosas.

E como reage?
Procuro me pronunciar. Há momentos em que você nem reage, tal é o nível de ofensa. É um estado de choque. Já tive reações diversas, dependendo do ambiente, porque você tem que pensar muito rápido.

Pode dar exemplos?
Prefiro não falar. Mas a coisa é tão maléfica que a reação tem de ser de autoridade, porque as justificativas são logo “não, não é nada disso'”. Então ataco com autoridade mesmo, senão é bem capaz de ter de dar explicações sobre a reação. Como se um cachorro te mordesse e alguém dissesse: “Quem mandou passar por aqui?”. Então você fala: “Aqui não pode passar? Quem pode passar?”.

Como concilia a dona-de-casa com a política?
Sempre estou próxima da minha família. Outro dia eu e minha irmã Celeide (70 anos) pensamos a mesma coisa sobre o Pitanga, sem saber. Ele está trabalhando em O Clone, faz o personagem Tião e come muitos pastéis em cena. Ela pensou em fazer os pasteizinhos para ele levar e eu pensei a mesma coisa, porque nós duas somos ótimas cozinheiras e o conquistamos com nossos pastéis.

Foram seus pastéis que conquistaram Antônio Pitanga?
Não é bem isso. O Pitanga gostava demais dos pastéis quando começou a freqüentar nossa casa. É uma tradição na minha família tratar bem quem chega lá em casa, e você dá aquilo que sabe fazer melhor. Então eu fazia uns pasteizinhos para o Pitanga, e ele gostava demais. Estou muito sem tempo, mas sempre faço uma comidinha que ele e nossos filhos gostem. Não quero abrir mão disso, porque na política é tudo passageiro.

O que conseguiu dar aos netos que não teve na infância?
Pelo menos eles estão estudando na época certa. Eu fiz o primário e depois fui autodidata. Batalhei para completar o segundo grau e só fiz a universidade com 40 anos. Meus netos estão estudando de acordo com a faixa etária. A mais velha, Ana, está com 18 e fazendo o pré-vestibular. Ela acabou de voltar dos Estados Unidos, onde ficou um ano fazendo curso de inglês. Ela e os outros três (Benito, 16, Ettiene, 15, e Diego, 11) têm muito mais chances do que eu.

O que acha de Roseana Sarney, a primeira mulher a se candidatar, com chances, à Presidência?
Ela é uma política e está perseguindo sua trajetória. A observação que faço é sobre o que ela representa: não é um projeto de renovação, que possa dar combate às desigualdades sociais do País. Não estou tratando de política de gênero e muito menos racial. Me colocaria da mesma forma sobre a candidatura de um negro ou de uma negra.

E qual a expectativa de disputar o governo com a primeira-dama Rosinha Matheus?
Espero ganhar. Vou tratá-la como estarei tratando os demais candidatos. Não escolho adversários.

A senhora já trabalhou com Garotinho. Ele daria um bom presidente?
Meu candidato é Luiz Inácio Lula da Silva.

Dia 8 é o Dia Internacional da Mulher. O que mudou para você?
Sou uma vitoriosa. Na família, na política e na relação com os amigos. Nesse 8 de março, podemos levantar bandeiras que ajudaram na trajetória de cada uma de nós. Estamos um pouquinho aquém, mas houve grandes evoluções. O ano que passou foi pesado para as mulheres, com guerras, mortes. Espero no próximo 8 de março festejar com mais alegria. Não deixo de agradecer por mais essa data, sem esquecer que a luta continua.