domingo, 26 de setembro de 2010

CHAPA BRANCA

A matéria era sobre uma grande mulher, mãe de nove filhos, cinco deles adotados. Era o perfil da mulher do governador do Rio de Janeiro, num momento em que ela adentrava na vida pública para nunca mais sair. Nos jardins do Palácio Laranjeiras, Rosinha Garotinho contou como conciliava a administração do lar com os compromissos no governo. Contou também bastidores de seu relacionamento com o então governador Anthony Garotinho e otras cositas más, tudo num tom descontraído, de felicidade plena, de harmonia sem fim com a vida.

Denúncias contra o então governador? Intrigas da oposição? O jogo sujo da política estadual? Não, não havia espaço pra isso na matéria, que foi assinada também pela Vivianne Cohen e está aí embaixo.

Revista Istoé Gente, edição 41, de 15 de maio de 2000

“A gente não sabe o dia de amanhã, mas não tenho pretensão política”

O ano era 1994. Derrotado na eleição para o governo do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho acabara de se converter à religião evangélica e conversava com o pastor Antônio Carlos Costa em sua casa. Garotinho se lamentava de que a mulher, Rosângela Barros Assed Matheus, não aceitava sua conversão. Nesse exato momento, ela entrou na sala e, indignada, expulsou o pastor de sua casa. Hoje, evangélica, Rosinha, 37 anos, ainda conserva a mesma personalidade forte. Em meio à crise enfrentada pelo governador Anthony Garotinho, motivada por denúncias de corrupção na sua administração, ela assumiu a Secretaria de Ação Social e Cidadania há duas semanas. Na pauta de prioridades estão a reforma dos abrigos que recolhem a população de rua e a criação de cursos profissionalizantes e de uma segunda clínica de dependentes químicos. “Ele estava precisando de mim nessa hora”, argumenta Rosinha. “Eu só posso contratar quem eu puder demitir”, diz Garotinho. “Se um dia eu tiver de demiti-la, minha vida estará destruída”, conclui o governador.
Ao assumir o posto, Rosinha realizou um antigo desejo de Leonel Brizola. Desde 1986, quando Garotinho se elegeu deputado estadual, o cacique do PDT queria incluir a atual primeira-dama entre os candidatos do partido. A preocupação com os filhos, no entanto, sempre falou mais alto. Até agora. “A gente não sabe o dia de amanhã, mas não tenho pretensão política”, garante. Na nova função, Rosinha teve de abrir mão de alguns hábitos. Contar histórias para os filhos e almoçar em casa, por exemplo, são compromissos que não se encaixam mais em sua agenda. “Disse aos meus filhos que seria por pouco tempo e eles entenderam.”
Na vida pública Rosinha é estreante. Mas a matriarca dos Matheus é uma veterana em assuntos domésticos. Em casa, ela conseguiu a proeza de organizar a vida em família na atual residência do governador, o histórico Palácio Laranjeiras, recheado de móveis antigos, quadros valiosos e outras relíquias. No primeiro andar, somente a cozinha e dois quartos podem ser freqüentados pela garotada. O restante é área proibida. “Quando fomos morar no palácio, levei todos para conhecer a parte onde eles não poderiam ir”, conta Rosinha. “Mostrando, a gente mata a curiosidade”, explica. As regras não param por aí. Andar de biquíni fora da área da piscina é terminantemente proibido.
Na área residencial do palácio, os filhos dividem os quartos. No primeiro, dormem Vladimir, 15 anos, e Altamir, 23, o irmão caçula que a primeira-dama adotou como filho quando sua mãe morreu, há 17 anos. O segundo pertence a Anthony, 10, e a Wanderson, 8, filho da babá, Mara, também adotado. Clarissa, 17, dorme sozinha, depois que Aparecida (outra filha adotada), 25, se casou e foi morar em Campos. Os outros três – Clara, 5, Amanda, 13, e Davi, de 1 ano – dividem o mesmo quarto. Amanda é filha de outra babá, Neti, e Davi foi adotado ainda recém-nascido, durante um jantar na casa de um correligionário do governador, que é dono de uma creche. “Ele tinha sido abandonado e decidimos ficar com ele”, diz Rosinha.
A princípio, a primeira-dama não queria morar no palácio, mas a necessidade a fez mudar de idéia. “Onde iria arrumar um lugar para abrigar todos os meus filhos com o salário do governador?”, questiona. E explica: “Não queria que meus filhos achassem que morar num palácio era a melhor coisa do mundo.” Rosinha também preparou os filhos para enfrentar o preconceito. Segundo ela, não foram poucas as vezes em que Aparecida e Wanderson – ambos negros – foram discriminados por convidados. A mãe de uma colega de Amanda do tradicional Colégio Sion, no Rio, proibiu a filha de brincar com a amiga quando descobriu que ela era adotada. “Sempre converso com meus filhos sobre o que pode acontecer”, diz a primeira-dama. “Quando acontece, eles já estão preparados.”
Não foi diferente durante a crise recente no governo. Quando foram publicadas nos jornais as primeiras denúncias, Rosinha chamou os filhos e explicou que eles poderiam ouvir gozações e ofensas ao pai. A estratégia teve efeito prático. Durante um seminário na Faculdade Cândido Mendes, onde Clarissa cursa o primeiro período de Direito, um dos palestrantes falava mal do governo Garotinho. A filha do governador pediu a palavra no fim da preleção e defendeu o pai. “Ela foi mais aplaudida do que o palestrante”, conta a primeira-dama. Clarissa, aliás, é a filha que mais gosta de política na família. Na última eleição, ela chegou a subir ao palanque em Campos, enquanto os pais faziam campanha no Rio. Em casa, ela cumpre as regras estipuladas pela mãe. “Tenho hora para chegar em casa, senão levo bronca e fico de castigo”, confessa.
No palácio, a rotina das crianças em nada lembra a dos príncipes. Vladimir, por exemplo, não tem moleza. Acostumado a ficar em recuperação na escola, ele trabalha como digitador no Palácio Guanabara e ganha o salário mais baixo pago pelo governo. Antes disso, ele teve aulas com os garçons que trabalham no palácio. A idéia partiu de Rosinha. “Meus filhos ficam muito presos em casa. Têm de aprender a se virar de alguma forma.”
Desde que Garotinho começou a se destacar na política, os filhos não saem sem seguranças por perto. A falta de tempo do casal fez com que Rosinha contratasse uma orientadora para os três filhos menores – Anthony, Wanderson e Clara –, mas ela não deixa de participar da educação. “Vou na escola nas reuniões de pais e assino as cadernetas.” Conversas sobre namoros, cuidados com doenças e puberdade também são freqüentes. Tudo é dividido com o governador. Nos fins-de-semana, Rosinha aproveita para sair com os filhos e os amigos deles. De uma vez só, levou 16 crianças ao teatro.
A harmonia do casal só é quebrada nos detalhes. “Garotinho gosta de banho frio e minha água é fervendo”, diz a primeira-dama, citando apenas um exemplo das divergências. Na praia, as diferenças também aparecem. Enquanto o governador gosta de sol e de ficar na água, Rosinha fica embaixo da barraca. Nada que provoque alguma discussão séria. “São 18 anos de casamento. Já tínhamos muito em comum e fomos nos moldando com o tempo.”
A afinidade vem desde os tempos do teatro, quando os dois se conheceram, em 1979. Garotinho acabara de levar para Campos o teatro do oprimido, depois de fazer um curso com Augusto Boal, no Rio. A dupla chegou a fazer sucesso até em performances dentro dos ônibus da cidade. Numa campanha contra um aumento da passagem, os dois simulavam discussões dentro do ônibus e incitavam os passageiros a se rebelar. “A Rosinha levava bronca da mãe porque passava o dia inteiro no teatro”, conta Maria Helena Gomes da Silva, 42, amiga da primeira-dama.
Nessa época, Garotinho ainda era Bolinha, o apelido que ele ganhou ao nascer, com cinco quilos. Já o codinome de Rosinha foi criado pelo marido, em uma das inúmeras poesias que ele escreveu para a mulher. Eram tempos difíceis. No início dos anos 80, o atual governador era radialista e despontava na política, mas chegou a ficar desempregado duas vezes. “Sofremos perseguições porque Garotinho era uma liderança nova”, lembra Rosinha. O que sustentou a família na época foram doações da população mais pobre de Campos. “Cheguei a fazer uma panela de arroz 22 vezes num dia, porque as pessoas davam comida mas ficavam pra almoçar.”
A única grande crise atravessada pelo casal aconteceu em 1994, quando o governador virou evangélico, após sofrer um acidente de carro. Rosinha não aceitou a troca do antigo discurso materialista pelas orações. Enquanto a primeira-dama não perdia um baile de sábado no Carinhoso, antiga gafieira de Ipanema, o marido a acompanhava a contragosto. A situação só mudou depois de dois anos, quando a primeira-dama se converteu. A resolução de uma crise que quase impediu a segunda candidatura de Garotinho à Prefeitura de Campos foi o motivo. “Foi a primeira vez que rezei, e deu certo.”
Atualmente, Rosinha freqüenta os cultos toda semana, dá 10% do que ganha na Secretaria para a igreja e tem três bíblias. Mas não deixou a vaidade de lado. Depois da lipoaspiração na barriga em fevereiro, ela aguarda para voltar às aulas de alongamento. Visitas semanais ao salão de beleza e idas esporádicas ao spa também fazem parte de sua rotina. Tudo para continuar mantendo a família em ordem, tocar os projetos da Secretaria e apoiar o marido sempre. Sem perder a pose. “Ela é o braço direito da família inteira”, diz Wilma Barros, tia e madrinha de Rosinha. A primeira-dama aceita ser considerada o braço direito da família, mas que ninguém diga perto dela a velha máxima de que atrás de um grande homem existe sempre uma grande mulher. “Ao lado é melhor”, conclui.