quarta-feira, 30 de março de 2011

HONÓRIO, O GURGEL - O MENDIGO


O Cem era o perfeito recanto dos anos inconsequentes, ilha de paz e silêncio entre o centro de pesquisa de energia nuclear e o morro do Pasmado. Era um prédio daqueles antigos e tinha apartamentos espaçosos o suficente para a dura obrigação da época, imposta pela absoluta falta de dinheiro, a necessidade latente de dividir uma casa com um amigo. Dotado de uma suíte pra um e um quarto e outro banheiro pro outro, o 111 do Cem atendia ao quesito principal em situação tão difícil: a harmonia. E como era no primeiro andar, parecia casa, tinha até pátio nos fundos. O único problema era a falta de vaga.

Garagem, o prédio até tinha, mas conseguir vaga morando há menos de quatro anos por lá seria tarefa pra oficial do Bope, e como dinheiro pra alugar uma também não havia, o jeito era tentar a sorte na movimentada General Severiano, rua histórica, sim, sem dúvida, mas também de triste memória, quando, com a taça de primeiro campeão continental do planeta já na Colina Histórica, fomos prejudicados escandalosamente numa final de campeonato, no ano da graça de 1948.

Cinquenta anos depois, em outro ano de luz, a chuva em vias de se tornar torrencial provocava aquela corrida desagradável, primeiro subindo e depois descendo o elevado do Pasmado, por cima do túnel pelo qual já passaram até de helicóptero. Era mais de meia-noite e, como estamos falando de anos inconsequentes, era hora de sair de casa. Honório estava estacionado do outro lado do túnel, por falta de vaga mais perto, e a corrida até ele, primeiro subindo depois descendo, foi cansativa a ponto de gerar aquela sutil felicidade de abrir a porta, sentar no banco do motorista e fechar a porta, só um pouco molhado, a chuva começando a cair forte lá fora.

Daí veio aquele cheiro estranho, um budum de chulé misturado com certa nhaca de cecê e talvez uma pitada de amônia, quem sabe também um pouco de fezes, daquelas ressecadas, mais difíceis de limpar, que ficam presas naqueles cabelinhos... A primeira reação foi olhar para o lado, para o banco do carona, e dar pela falta do plástico preto que cobria as férias do vidro da janela, enfurnado havia alguns meses dentro da porta de fibra de vidro. Depois foi só virar pra trás e lá estava ele, o plástico, a servir de cobertor para aquele mendigo que dormia profundamente, encolhido, para se encaixar melhor no banco onde cabiam, no máximo, apertando um pouquinho, duas pessoas sentadas.


Dormia a ponto de ronronar e não chegou nem perto de acordar com o simples Ô, Ô, acorda aí, mermão, pronunciado ainda sob lampejos de incredulidade. Foi preciso cutucar o cara para que ele, os olhos ainda fechados, levantasse a cabeça e começasse a perceber o que estava acontecendo. O diálogo foi rápido e o mendigo compreendeu logo o fato de que aquele carro, tão confortável, tão quentinho, envolto pela fibra de vidro, iria sair dali, e que não seria nem um pouco conveniente que ele fosse junto, dormindo feliz no banco de trás pelas ruas de Botafogo e adjacências. Então ele se despediu com toda a educação, pedindo desculpas pelo inconveniente, ainda que através de grunhidos praticamente ininteligíveis, enquanto se esforçava para se livrar do banco da frente levantado e sair pela porta do carona, levando consigo, pendurado na cabeça, o saco plástico preto, agora em vias de ficar tão encharcado quanto o banco do carona do Gurgel, que recebia em cheio a chuva enquanto rodava pelas ruas de Botafogo, livrando-se aos poucos daquele budum de chulé, daquela nhaca de cecê.