domingo, 8 de maio de 2011

MÃE

Em 2007, Gal Costa adotou um menino, Gabriel, então com dois anos de idade. Quando soube disso, foi inevitável lembrar dessa entrevista aí embaixo, feita seis anos antes dessa adoção, em Salvador.

Revista Istoé Gente, edição 112, de 24 de setembro de 2001

“Tinha loucura para ter um filho, muito desejo mesmo. Fiz todos os exames e vim a saber que eu tenho um entupimento nas trompas. Tem uma pequena passagem, mas muito estreita. Seria difícil ficar grávida naturalmente.”

Um corredor leva à ampla sala de paredes envidraçadas, envolta pelo mar da Bahia. A decoração em tons claros e os sofás de estilo moderno dão um ar de simplicidade elegante à sala de dois ambientes, que recebe em cheio a luz de mais um dia ensolarado de Salvador. À vontade, a cantora Gal Costa nem de longe parece alguém que foi alvo de ataques por defender o ex-senador Antônio Carlos Magalhães, ou que acabou de receber críticas negativas de seu novo disco (De Tantos Amores, o 26º da carreira), com várias regravações de seu repertório. Gal parece de bem com a vida. “Sempre gostei dessa casa. Tive a oportunidade de comprar e vim morar aqui. Não planejei nada”, comenta ela, referindo-se ao antigo hotel no Morro da Paciência com vista paradisíaca.
Antes de posar para fotos, Gal avisa que vai comer algo e segue para a cozinha. Entre uma garfada e outra de frango com legumes, obra da dieta que a fez perder seis quilos nos últimos três meses, a conversa flui. Mas é na volta para a sala ensolarada, depois do almoço, que vem o mais importante. “Tinha loucura para ter um filho, muito desejo mesmo”, conta. O sonho de ser mãe, porém, não pôde ser realizado. Em 1993, quando vivia com o violonista Marco Pereira, com quem ficou casada durante dois anos, Gal descobriu que não podia engravidar. “Fiz todos os exames e vim a saber que eu tenho um entupimento nas trompas. Tem uma pequena passagem, mas muito estreita. Seria difícil ficar grávida naturalmente.”
Esta é uma história que deverá constar da autobiografia que Gal está escrevendo. “Baianamente”, é claro, sem compromisso com prazos ou com a ordem cronológica dos fatos, embora dedique-se ao projeto três vezes por semana. “Escrevo lembranças da minha vida, coisas do momento e vou armazenando. Sento em frente ao computador e deixo sair. Depois dou uma arrumada”, conta a cantora, que admite chamar alguém para lapidar o texto final do futuro livro.
Quando ficar pronta, a autobiografia de Maria da Graça Costa Penna Burgos, a Gracinha, que saiu de Salvador em 1965 para tentar viver de música no Rio de Janeiro, também terá histórias como as do tempo em que virou nome de praia carioca. Era o fim dos anos 60 e início dos 70, quando as Dunas da Gal, em Ipanema, tornaram-se ponto de encontro de artistas, intelectuais e de quem procurava uma ilha de liberdade na ditadura militar. Musa do local, vivenciou tudo o que se passou por ali. Ou quase tudo. Das drogas que rolavam à vontade nas Dunas, só experimentou maconha. Uma vez para nunca mais. “Fumei e detestei logo. Dá uma sensação de distanciamento de que não gostei. Já sou muito louca sem consumir nada.”
Naquela época, Gal não era apenas a musa da praia. Já reconhecida nacionalmente, a cantora acabou assumindo, meio sem querer, o posto de representante do Tropicalismo no País. Com Caetano Veloso e Gilberto Gil exilados pelo regime, a imagem do movimento revolucionário criado pelos baianos tornou-se aquela morena de cabelos enormes e roupas esquisitas. “Não tinha noção dessa história de eu ter ficado no Brasil representando o Tropicalismo, como um pára-raios. Hoje tenho uma consciência mais inteira do que aquilo representou.”
Gal é taxativa quando comenta os motivos que a transformaram, junto com Gil, Caetano e Maria Bethânia, nas estrelas do movimento que reuniu outros artistas, hoje sem tanta expressão nacional. “Somos um grupo que, por acaso, saiu junto da Bahia para tocar nossas carreiras no Sul. Depois fizemos os Doces Bárbaros, mas acho que cada um de nós tem sua marca, que é muito importante para o Brasil.” Do convívio intenso entre os quatro naquela época, ficou uma amizade que perdura até hoje. “Não nos vemos com tanta freqüência como antes, mas estou com eles sempre que posso”, diz ela, há cinco anos vizinha de Caetano no Morro da Paciência.
Aos 55 anos, a cantora que já posou nua e abusou de figurinos sensuais em shows continua vaidosa. O regime estipulado pelo endocrinologista paulista Ricardo Peres – de 1.200 calorias diárias – não é o primeiro e, tudo indica, nem será o último. “Sempre tive problemas de engordar. Fiz dieta minha vida inteira.” Seis quilos sumiram de sua balança nos últimos três meses. Ela quer perder mais quatro até novembro e faz uma hora diária de exercícios na esteira em casa. Tanto esforço para se manter em forma parece não ter relação com preocupações com a passagem do tempo. Sem pensar muito antes de responder, a cantora garante que nunca passou por qualquer crise, seja dos 40 ou dos 50. “Me sinto jovem, saudável e bem. Se passei por alguma crise, nem percebi”, diz.
Solteira, apesar de ressaltar que “sozinha a gente nunca está”, Gal só se aborrece com episódios como o das críticas recebidas por apoiar o ex-senador Antônio Carlos Magalhães durante as investigações das denúncias sobre a violação do sigilo nas votações no Senado, que culminaram com sua renúncia. Em maio, Gal participou de um ato em solidariedade a ACM na Bahia. Posou para uma foto com ele ao lado da escritora Zélia Gattai. Pelo gesto, levou uma saraivada de críticas que chegaram, inclusive, ao seu correio eletrônico pessoal. “Recebi mensagens de pessoas muito irritadas, algumas até grosseiras comigo. Havia uma postura fascista, faz parte do patrulhamento essa coisa de você ir com toda a raiva em cima de uma pessoa.”
Apesar disso, a cantora garante que faria tudo de novo hoje e atribui os petardos a um grande mal-entendido. “Não dei apoio político a Antônio Carlos Magalhães. Fui dar meu apoio moral ao homem que fez muito pela cultura da Bahia.” Considera, porém, correto ACM ficar sem mandato: “Ele mereceu. Foi cassado. Está mais do que certo. Acho que a impunidade nesse país tem que acabar”. E expõe a mágoa pela maneira como foi tratada: “Nunca mamei nas tetas do governo. Acho que as pessoas tinham que avaliar todo um histórico de artista e pessoa íntegra.”
As críticas a seu último disco, cujo lançamento foi adiado de junho para agosto justamente por causa do episódio ACM, também a incomodaram. Questionada sobre o excesso de regravações, Gal escora-se em divas da música americana, como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday, que regravaram canções de seus repertórios em vários momentos das carreiras. Para realçar sua opinião, chega a dispensar elogios a sua obra. “Alguns dizem que minha primeira gravação de ‘Índia’ é definitiva. Não concordo. A idéia de reconstruir isso é importante.” O tema, o amor, foi sugestão de Daniel Filho, que a dirigiu no CD e irá dirigi-la nos shows, previstos para o fim do ano: “Num disco, a palavra final é do cantor, principalmente no caso de uma Gal. Você tem de ouvi-la primeiro antes de dar opinião”, diz ele.
Se hoje tem de explicar por que optou pelas regravações, Gal já foi criticada por apresentar algo totalmente diferente do esperado. Em 1994, chamou Gerald Thomas para dirigi-la no espetáculo O Sorriso do Gato de Alice. O resultado: muitas polêmicas e algumas vaias para a direção do show no qual ela mostrava os seios à platéia. Nada que tenha intimidado a artista. Até hoje, ela considera aquele espetáculo um marco no showbusiness brasileiro. “Não adianta. Quando faço algo ousado, reclamam. Quando não faço, dizem que eu tenho que fazer”, resigna-se. Gerald derrama-se em elogios: “Não há nenhuma voz tão pura no mundo. As imitadoras tentam, mas, coitadas, não chegam perto”.
O mesmo ímpeto usado para defender seus shows vale quando o assunto é a elaboração do repertório de seus discos. Há 13 anos na mesma gravadora, a BMG, a libriana Gal Costa já teve de impor suas opiniões. Diz nunca ter tido grandes conflitos no mercado fonográfico, mas cita ocasiões em que teve que ‘se posicionar’. Lembra de quando sua antiga gravadora, a Universal, quis tirar a música “Borzeguim”, de Tom Jobim, do disco Minha Voz. “Disse que não ia tirar e não tirei.” É também com objetividade que a diva da MPB analisa a nova geração de cantoras brasileiras. “O rock que a Cássia Eller faz é muito bom. Da Zélia Duncan, gosto do timbre da voz, um timbre grave.” Questionada se a safra atual pode alcançar o nível dela, de Maria Bethânia e Elis Regina, Gal é clara: “Elas têm potencial, mas, na minha opinião, nossa geração é imbatível”. Para Zélia Duncan, essas palavras bastam. “Fico feliz só em saber que a Gal gosta do meu timbre.”
A cantora que hoje inspira tanta admiração já esteve do outro lado. Em 1963, conheceu o ídolo João Gilberto, que estava com a mulher, Miúcha, na Bahia. Os três foram para a casa do cronista social Silvio Lamer, onde João Gilberto começou a cantar ao violão. Reparando na morena que o assistia com veneração, João perguntou qual era o tom dela. Tocou, então, “Mangueira” e pediu para Gal cantar. Foi a primeira de uma série de músicas interpretadas pela baiana, que nunca havia cantado profissionalmente. “Fui cantando e ele não falava nada. Fui ficando aflita, achando que ele estava odiando, porque eu estava muito nervosa”, conta Gal. No fim da sessão, João Gilberto parou, olhou para ela e disse as palavras que faltavam para a jovem intérprete deixar a Bahia e tentar a carreira artística no Rio. “Você é a maior cantora do Brasil.”