quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

JORNALISMO LITERÁRIO


Há exatos sessenta e cinco anos, o Vasco fazia sua estreia no primeiro campeonato continental interclubes da história do futebol, vencendo o Litoral, da Bolívia, por 2 a 1, com dois gols de Lelé. O torneio foi promovido pelo Colo Colo, do Chile, e viria a inspirar não só a criação da Taça Libertadores da América, doze anos depois, como da Copa dos Campeões da Europa, hoje a multiglobalizada Champions League. Disputado ao pé da Cordilheira dos Andes, num Estádio Nacional de Santiago sempre abarrotado de gente (pelo menos é o que mostram as fotos da época), o Campeonato Sul-Americano de Clubes Campeões de 1948 foi reconhecido oficialmente em 1996 pela Conmebol. Além disso, inspirou uma série de quatro reportagens da revista O Cruzeiro, assinadas pelo mesmo Helio Fernandes da Tribuna de Imprensa, que deve ter se divertido um bocado durante um mês na capital chilena, cobrindo o campeonato junto com jornalistas de todo o continente e também da Europa, como Jacques Ferran, enviado especial do jornal francês L'Equipe.

Hélio Fernandes se divertiu, sem dúvida, e deixou um registro histórico de uma dessas conquistas que só o Vasco tem. Fez isso com um estilo que até se vê hoje em dia em jornais e revistas, mas sem a menor elegância; e como além de vascaíno de coração o Relatos é, também, fã desse estilo, não o de hoje, mas o de antigamente, onde a opinião era exposta, sim, mas com informação suficiente para abalizá-la, e com a fundamental ajuda do uso correto, preciso, do humor e da ironia, que nos dias atuais vêm sendo diuturnamente confundidos, o tempo todo, com grosseria e sensacionalismo, pedimos licença para reproduzir aqui, com a ajuda da Netvasco, que publicou essas matérias há uns anos, três das quatro reportagens, três porque a última contém apenas singelos agradecimentos do jornalista a quem o ajudou nos trinta dias flanando por Santiago. Quer dizer, contém agradecimentos e pelo menos uma informação relevante, a de que o presidente do Vasco na época, Cyro Aranha, recusou cachês maiores para amistosos em outras paragens e insistiu para que o Expresso da Vitória disputasse o Sul-Americano. Sujeito de visão.

Abaixo, a terceira das quatro matérias de Hélio Fernandes

Revista O Cruzeiro, edição 26, de 17 de abril de 1948
"Chegou a ponto de marcar impedimento de Chico depois do ponta vascaíno ter driblado os dois zagueiros. É preciso contar mais alguma coisa?"
Hélio Fernandes
Sete foram os juízes que atuaram no Torneio dos Campeões, sem contar naturalmente o quase desconhecido uruguaio Fernandes, que estreou precisamente no último jogo, depois de decidido o campeonato. 

Três chilenos, White, Lesson e Madrid. Um certo Sr. Paredes da Bolívia. Valentine do Uruguai. Fortes da Argentina e Malcher do Brasil. Cada um deles levou para Santiago, ao lado de excessivo ardor patriótico, manias e regras diferentes, interpretações as mais absurdas do regulamento internacional, transformando a pacata cidade chilena numa edição de bolso da famosa Torre de Babel.
White é a mais completa vocação de guarda-noturno que conhecemos. Mete o apito na boca e só fica satisfeito quando escuta o som estridente que seu próprio sopro arranca do aparelho inanimado. Narciso de nova espécie, entra em campo munido de pente, escova de unhas, leite de rosas para a pele, tesourinha para o bigode, esperando-se a cada momento que puxe de um dos bolsos o espelhinho que há de reproduzir a própria imagem, proporcionando-lhe uma satisfação inigualável.
Lesson, possuidor de milhões de pesos e de fazendas quilométricas, talvez deslumbrado com a vastidão da própria fortuna, não teve tempo de aprender regulamentos. Autodidata em matéria de arbitragens, criou regras particulares que aplica em espetáculos públicos, criando com isso enormes complicações.
Madrid é o melhorzinho dos três, havendo até quem assegure que sabe ler e escrever. Até lá não chegamos nós. Começou mal, e para melhorar precisou de um delicado estímulo de Diogo Rangel, que disse-lhe ao ouvido: a sua formidável cara de cachorro não está agradando aos brasileiros.
O Sr. Paredes, boliviano de nascimento e chileno por merecimento,  foi o mais estranho dos juízes que apareceram em Santiago. Desconhecido até de alguns membros da própria delegação, andou mendigando por muito tempo uma arbitragem, porque, chorava ele, “não posso voltar para a minha terra sem ter atuado pelo menos uma vez.” Rondava Diogo. Rondava Simon do Uruguai. Cercava Marin por todos os lados. Até que acabou premiado. Escolhido para atuar em Vasco x Colo Colo, foi visto no sábado antes do jogo em doce e idílico colóquio com o presidente do clube local, colóquio que durou algumas horas. Entremeado de instante a instante por abraços amistosos, risinhos e segredinhos ao ouvido.

E que acertaram seus relógios nesse encontro noturno, basta ler a crônica dos próprios jornais chilenos, que afirmaram – Revista Hercília, La Nacion e Diário Ilustrado – que errar como o Sr. Paredes errou, só deliberadamente, de espírito preconcebido. Por uma coincidência espantosa, o Sr. Paredes errou durante  90 minutos, sempre contra o mesmo clube. Os ataques do Vasco eram paralisados à entrada da área, de qualquer maneira e sob qualquer pretexto. O Sr. Paredes primeiro apitava. Depois escolhia a punição. Chegou a ponto de marcar impedimento de Chico depois do ponta vascaíno ter driblado os dois zagueiros. É preciso contar mais alguma coisa?
O Sr. Fortes, muito conhecido de outras épocas, não teve oportunidade de exibir suas habilidades, atuando uma única vez, assim mesmo num jogo sem importância.
Ao Sr. Valentine, já por duas vezes – 1945 e 46 – protagonista em dramas dos quais nosso país também participava, coube o mesmo papel desta vez. Por eliminação, ficou como único candidato a dirigir Vasco x River Plate, o que efetivamente veio a suceder. Dias antes do jogo, garantiu a Diogo na presença de jornalistas que seu maior desejo era reabilitar-se dos fracassos dos anos anteriores, e que, disposto a encerrar sua carreira de juiz, muito satisfeito ficaria se isso acontecesse com uma vitória do Brasil.
E realmente fez nesse jogo sua maior arbitragem. Calmo, sereno, acompanhando bem as jogadas e marcando com precisão, foi de uma imparcialidade a toda prova. E mesmo no famoso gol de Chico, nenhuma acusação mais séria lhe pode ser feita. Errou sem dúvida nenhuma ao assinalar impedimento de Chico. Mas o fato passaria apenas como um erro, perfeitamente desculpável, se para infelicidade sua, concluindo ilegalmente a jogada – depois do claro e indiscutível apito – Chico não aninhasse a bola nas redes argentinas.
Descontrolando-se em face da atitude da torcida que queria o gol, e deixando-se levar pelo delírio dos jogadores vascaínos, tentou reformar a própria decisão, apontando timidamente para o centro do gramado. Mas o apito fora estridente demais, e os argentinos não se conformaram, passando a exigir, aos gritos e mesmo a socos, a cobrança do impedimento. Reagindo nobremente contra a fraqueza momentânea, o Sr. Valentine mandou bater o impedimento, conseguindo com essa decisão, mantida a despeito de tremenda vaia, levar o jogo até o final.
Finalmente, ao brasileiro Malcher, o último a estrear, coube a missão mais perigosa e delicada: contrariar os desígnios comercias do antiesportivo Robinson Álvares Marin.
Malcher deveria estrear dirigindo River x Nacional. Mas como os gênios da delegação acharam que o jogo era importante demais, resolveram que Malcher adoecesse, apesar dos protestos do rapaz que, realmente corajoso e confiante nas próprias qualidades, queria apitar de qualquer maneira. Não conseguiu. Foi então indicado para Colo Colo X Nacional. Mas no intervalo excursionou a Concepcion com o quadro uruguaio, onde foi pivô de incidentes desagradáveis, apenas porque não quis atuar de acordo com a toada muito em voga no país andino: favorecer sempre o time da casa, qualquer que seja o adversário.
Com essa demonstração de energia e desassombro do árbitro brasileiro, assustou-se Robinson Marin, que na primeira reunião propôs a sua troca por Fortes, argumentando que “o público talvez não compreendesse a indicação de um juiz que já havia provocado incidentes em um jogo amistoso”. Mas como o delegado uruguaio manteve-se intransigente, não houve outra saída e Malcher foi mesmo indicado.
Mas que ele seria sacrificado aos interesses inconfessáveis do presidente do Colo Colo, ninguém tinha dúvidas. Iniciado o jogo, viu-se que o ambiente estava bastante carregado contra Malcher e que tanto o técnico como os jogadores do Colo Colo estavam industriados para jogá-lo contra a multidão. Os bandeirinhas também tomaram parte na comédia, visando apenas criar confusão.
Sentado ao lado do pavilhão do Vasco, Robinson Marin era quem mais torcia. A cada marcação ordenada contra o Colo Colo, ele levantava-se e, virado para as tribunas, exclamava dramaticamente:  “com esse juiz é impossível ganhar”.
No lance que provocou a primeira interrupção, lance perfeitamente justo com um gol licitamente conquistado. Marin aproximou-se do bolo formado em volta do juiz e, em vez de acalmar os que desejavam linchá-lo, incitou-os com essa frase, que é um primor de indecência e falta de esportividade:  “este juiz é um ladrão e está vendido ao Nacional”. Daí em diante valeu tudo. 
Finalmente, quando os locais exigiam a marcação de um pênalti que não existiu, Malcher muito justamente suspendeu a partida, recusando-se a continuar por falta de garantias. Era a única decisão a tomar e ele só merece aplausos por isso. Começaram então as maquinações de bastidores, quando os dirigentes chilenos, na quase unanimidade, puseram as cartas na mesa e mostraram seu jogo escuso.  O Sr. Afonséa, presidente da Divisão de Honor, fez um comício contra Malcher declarando- o único culpado pelos acontecimentos. O chefe dos carabineiros, um senhor com muitos galões e pouca compostura, depois de conversar em segredo com Marin, transmitiu a Malcher a notícia definitiva: se não continuasse, não haveria garantias.
Diante disso, depois de confabular com os chefes da delegação e ouvir-lhe os conselhos, Malcher resolver voltar a campo e dar prosseguimento ao jogo. Mas o ambiente estava tão impregnado de terror, que o bispo de Santiago, presidente da Universidade Católica, presente ao vestiário, declarou-lhe:  “Que Deus o proteja, meu filho. Só Ele o salvará.” 

E realmente os dois gols que o Colo Colo conquistou em cinco minutos, perfeitamente lícitos, têm sabor de milagre, e só à influência divina podem ser atribuídos. Eles deram ao clube local a tão desejada vitória, e mais do que isso, evitaram uma catástrofe que já se desenhava nitidamente, e que na certa se consumaria se o Colo Colo tivesse perdido.
Mas de todos os incidentes quem saiu engrandecido, definitivamente glorificado, foi Malcher. Ele demonstrou uma honestidade a toda prova, uma energia fabulosa e uma coragem inescedível, além de um conhecimento precioso das regras internacionais e da maneira de aplicá-las. Ele foi o melhor juiz do campeonato. Disso ninguém tem dúvida.