quarta-feira, 2 de novembro de 2016

PRESUNTOS

O presunto era, em priscas eras, uma espécie de rito de iniciação do repórter. O presunto era pobre, sempre, negro, mulato ou "moreno" na maioria as vezes, quase todos não identificados. Podia estar escondido no mato, jogado numa vala à beira da estrada ou espremido na mala de um carro, como na foto ao lado, e quase sempre estava todo furado de tiro, bala de todo calibre e também faca, muitas vezes torturado. O presunto era a deixa pra ser valente, ver presunto e subir morro, pra mostrar valentia, era o que queria muito repórter na época na casa dos vinte e um ou dois aninhos, ainda que no primeiro de todos eles, na enorme comunidade de Jardim Catarina, em São Gonçalo, tenha sido mais conveniente ficar mesmo do lado de fora.

O fotógrafo, bem mais experiente naquilo, usava sapato branco e foi logo entrando no barraco pendente, de ripas que mal ultrapassavam um metro e sessenta de altura, toda a casa um pouco maior que um Fusca. Havia parentes, amigos e vizinhos do lado de fora, e o repórter se deixou ficar por ali, entrevistando baixinho, rapidinho, até que um primo da vítima saiu de dentro do barraco e avançou pra ele com dedo em riste dizendo pra escrever "aí que ia ter volta, que quem fez isso com meu primo vai pagar". E o repórter, claro, escrevendo tudo direitinho no bloco que eram as laudas dobradas e grampeadas, pra sair logo dali assim que viesse o fotógrafo, como de fato ocorreu, sem a menor vontade, muito menos valentia pra ver presunto nenhum.

Depois vieram outros, diversos, vistos até bem de perto. Presuntos no morro, em becos e latões de lixo, no mato entocado ou no descampado, esparramado. Vários, todo dia aparecendo por aí, e hoje devem continuar aparecendo, sem a cobertura jornalística de outros tempos a não ser em cada vez mais raros jornais que se dedicam a isso. E como hoje é Dia de Finados, o Relatos presta homenagem a essa pobre, sofrida gente que morre toda madrugada por aí, na guerra diária da vida.

A matéria abaixo é a da foto que ilustra o texto, do pequeno grande Raimundo Neto, digníssimo representante da alta burguesia de Jurujuba. A matéria tá bem no formato de um milhão de outras iguais a ela. Está aí, em honra ao presunto desconhecido, sem nomes, mas com patente, sobrenome e apelido, porque lá no fundo, embaçado pelo tempo, pela impressão nada perfeita do jornal, aparece o repórter desfocado, em toda a vivacidade de seus vinte e dois anos de idade. Só por isso.

Jornal O Fluminense, edição de domingo, 2, e segunda-feira, 3 de outubro de 1994

O cabo Paixão tinha tiros por todo o corpo e foi atingido na cabeça com um tiro de escopeta, calibre 12. O motorista Tita também apresentava várias perfurações. Segundo a perícia, as vítimas foram atingidas com 12 tiros de vários calibres - 12, 38 e diversos projéteis de pistola.

Um policial militar e um motorista de táxi foram encontrados mortos, na manhã de ontem, na mala de um táxi Chevette, número 1676, de placa AK-4053, de Niterói, estacionado em frente ao número 651 da Rua Padre Francisco Lana, em Santa Rosa. Ambos estavam sem documentos, mas foram identificados como o cabo Paixão, lotado no 12o BPM, e o taxista conhecido como Tita, que costumava fazer ponto na rodoviária de Niterói. Os dois cadáveres estavam com tiros por todo o corpo e a polícia ainda não sabe o motivo do crime.
O carro foi deixado em Santa Rosa por volta das 7h e a polícia foi chamada porque os moradores viram o sangue que escorria da mala do veículo. Os soldados Eliel e Bacellar foram os primeiros a chegar ao local e registraram a ocorrência. Eliel informou que o cabo Paixão, que aparentava 35 anos de idade, fazia trabalho interno no Batalhão. O soldado não tinha idéia do motivo do duplo homicídio.
Os corpos foram levados para o Instituto Médico-Legal (IML) de Niterói no próprio táxi. O cabo Paixão tinha tiros por todo o corpo e foi atingido na cabeça com um tiro de escopeta, calibre 12. O motorista Tita também apresentava várias perfurações. Segundo a perícia, as vítimas foram atingidas com 12 tiros de vários calibres - 12, 38 e diversos projéteis de pistola - e os dois foram mortos por volta das 5h de ontem. Ambos eram morenos e o taxista aparentava ter 28 anos de idade. O PM estava à paisana e Tita vestia calça e jaqueta jeans. A ocorrência foi registrada na 77a DP (Santa Rosa).