quinta-feira, 30 de março de 2017

A ENTREVISTA ENGRAÇADA

De todas as 119 matérias exibidas aqui no Relatos, a entrevista na qual o repórter mais riu foi, sem sombra de dúvida, esta aí embaixo, deste antepenúltimo texto a ser publicado no blog. A foto ao lado foi feita no local da entrevista, pelo Alexandre Sant'anna.

Revista Istoé Gente, edição 284, de 24 de janeiro de 2005

"Fico quieto mas começam a me provocar, me enchem até eu sapatear, plantar bananeira, cantar, fazer todos os números".

Na Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão postal do Rio em frente à cobertura onde mora, Ney Latorraca, 60, logo avisou: aquela era a primeira vez em 40 anos de carreira que aceitava falar na véspera de algo muito importante. Na sexta-feira 14, um dia após conceder entrevista à Gente, o ator voltou a encenar O Mistério de Irma Vap, a peça que fez ao lado de Marco Nanini entre 1986 e 1998 e foi vista por 2,5 milhões de pessoas. A nova montagem teve público restrito. Apenas os integrantes das filmagens de Quem Tem Medo de Irma Vap?, – com os mesmo dois atores se dividindo entre vários personagens –, que Carla Camurati começou a rodar no fim de 2004. O filme ainda não tem data de estréia, mas no momento é o que concentra as atenções do filho único dos cantores Alfredo Latorraca e Tomasa Palhares.

Teve alguma crise com os 60 anos?
Não, bateu crise aos 40. Achava que já era, que minha carreira estava uma porcaria. Tinha feito dois especiais na Globo que não tinham ido ao ar, Anarquistas Graças a Deus Rabo de Saia. Quando estrearam, me botaram no alto. Aí veio Um Sonho a Mais, dois filmes,Ópera do alandro e Palomera, e outro especial, Memórias de um Gigolô, com a Bruna Lombardi e o Lauro Corona. Nisso estava ensaiando Irma Vap, depois veio a TV Pirata, o Barbosa, o Vlad (da novela Vamp, de 1991) e a coisa foi.

Nunca mais reclamou?
Não, e fico contente que minha mãe tenha visto o filho fazer sucesso antes de morrer (em 1993). Tinha uma ligação muito forte com ela. Minha mãe foi girl (corista), trabalhou com Grande Otelo. Meu pai foi crooner. Para eles foi um desespero o filho ser ator, mas acho que sou bem-sucedido, porque também não sou um ator busto.

Ator busto?
Sabe aquela coisa de virar busto? O sujeito que se acha muito importante e fica assim, parado (faz pose de estátua). Não sou isso. Sei que vão chegar outros papéis. Fiz os personagens jovens de 
Nelson Rodrigues, Shakespeare, e agora vou fazer os avós. Depois faço o tataravô também.

Mas você já admitiu que adorava ser estrela.
Isso é frase de efeito para aparecer. É como a história de posar pelado. Fiz isso em 1974, para a revista Sétimo Céu. O título era: “O que a Vera Fischer tem que eu não tenho?”. Uma bobagem, parecia uma lagartixa, mas chamei atenção. Era tudo insegurança.

Pensou em ser cantor?
Queria dar continuidade ao que meus pais faziam. Formei o conjunto Eldorado, era o dono e cantava. Inclusive um dos garotos que botei no grupo, o Sion (Roberto Sion), virou maestro e arranjador da Elis Regina. Na verdade eu só cantava e dava pinta ali, até que soube de uma peça que precisava de um ator que cantasse. Fiz o teste e entrei no elenco de Pluft o Fantasminha, em 1964. Aí vi que seria interessante fazer teatro, seria um cantor que representava, e a música começou a sair de cena.

Gosta de cantar?
Todo lugar que vou eu canto. Quando vejo que uma entrevista na tevê não está rendendo, começo a cantar. Aí canto a música inteira e acabou a matéria. Geralmente canto “Gota d'água” (de Chico Buarque), é o meu forte. Numa festa também sou sempre convidado para ser a atração, o que vai fazer as gracinhas. Mas agora faço menos.

Por quê?
Antigamente eu chamava atenção por ir muito. Agora chamo por quase não aparecer, aí fica aquele burburinho quando chego. Fico quieto mas começam a me provocar, me enchem até eu sapatear, plantar bananeira, cantar, fazer todos os números. Mas com a violência não tenho saído muito. Ano passado, o aniversário da Luana Piovani tinha um mapa para ir. Não vou mais em festa que tem mapa, não dá mais.

Ficou mais caseiro?
Fico em casa com uma bermuda velha, vendo tevê. Vejo desde documentário de passarinho com a mãe até propaganda de anel vendido em 500 vezes.

Fica mais com amigos ou sozinho?
Estou sempre com amigos, Aracy Balabanian, Nanini, Bruna Lombardi, a Lomba... Viajei com o Miguel Falabella agora no Réveillon para Paris. Uma vez estava em Nova York e a Maria Padilha me disse que o Miguel estava lá. Ele me chamou para jogar buraco e ficamos 12 dias jogando, no final falávamos: “pega esse morto logo, desgraçado”. Isso foi em 2000 e dali surgiu a peça Capitanias Hereditárias (de 2002).

Está solteiro?
Solteiríssimo. Sou um bom partido, mas não me interessa mais falar de vida pessoal.

Você já disse que teve relações sexuais mas nenhuma marcante.
Foi uma fase que passou.

Como é sua rotina no momento?
Fico totalmente tenso. Tomo banho com medo de cair, passo o texto no banheiro, no almoço, dormindo. Aí pulo da cama, vou até o escritório, anoto um negócio, coisa de maluco. E rezo muito, tenho o meu kit-fé. Nossa Senhora Aparecida, Santo Antônio, Buda, alho, tudo junto, é um pacote. O Nanini não faz nada disso, diz que me tendo ao lado já basta, sou quase um patuá.

Que outra mania tem?
Gosto de tudo o mais próximo possível. Tenho uma geladeira no quarto e outra no banheiro. Também adoro despachar no escritório. Pago todas as contas com antecedência. Administro tudo, nada meu foi terceirizado. Não estou em Hollywood, né?

Ainda pensa em ter um filho?
Se acontecer, vai ser bom. Fiz um testamento há três anos e, se tiver um filho, 50% do que tenho será dele. Os outros 50% são da ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação), Gappa (Grupo de Apoio à Prevenção à Aids) de Santos, de uma entidade de combate à hanseníase e do Retiro dos Artistas. Se não tiver filhos, vai tudo para as instituições.

Colabora sempre com essas instituições?
Sempre. Hoje estou mais preocupado com isso do que com o trabalho. Só dar entrevista, receber aplauso, não tem graça. O ego já está bem alimentado.
Qual a sensação de voltar a fazer Irma Vap?
Daqui a um ano completam 20 anos que a gente começou a fazer. É muito forte. Pensamos que seria uma peça normal, que ficaria de três a oito meses em cartaz. Ficamos 11 anos, e agora veio essa idéia de transformar em cinema.

Topou de imediato fazer o filme?
Pensei que fosse brincadeira, era uma coisa tão longe. Mas em 2001 a Carla (Camuratti) nos procurou dizendo que estava com os direitos para o cinema. Eu e o Nanini queríamos nos encontrar de novo. Quero sempre trabalhar com um ator que tenha o mesmo respeito pelo teatro que eu. Você só consegue brilhar se tem uma pessoa que olhe no teu olho. Não basta fazer a parte dele. No teatro chegávamos oito horas antes para passar a peça inteira, isso manteve o sucesso.

Como é a relação com o Nanini?
Hoje é a minha relação mais forte. Foi a pessoa com quem fiquei mais tempo. Tenho 40 anos de carreira, trabalhei com o Nanini um terço disso. Antes da peça tínhamos acabado de fazer a novela Um Sonho a Mais, em 1984. A gente se conhece muito bem, um sabe quando o outro tá com dor de dente. Um diz: “Segura a peça pra mim hoje que não estou bem”, e o outro faz, sem o público perceber.

Nunca brigaram?
Claro, mas era coisa normal de uma dupla. Sempre tive mania de sair, de largar o projeto. Quando estava no auge, lotando todo dia, eu falava: “Não quero fazer mais”, mas era só uma frase para enlouquecer o Nanini. Fiz isso 5 mil vezes. No fim ele nem ligava mais, mas no começo acreditava, ficava irado. Só queria atenção, coisa de filho único.

Nanini é mais discreto, você é mais extrovertido. Isso não atrapalhou?
Quando começamos Irma Vap, os colegas apostavam quanto tempo ia durar. Quem apostou mais foi a Yoná Magalhães, que disse um mês. Temos temperamentos diferentes, mas muito fortes, por isso fizemos sucesso. Somos tensos, eu principalmente, duas úlceras, diverticulite. Chego mais cedo no teatro, fico na porta, falo com o pipoqueiro, com o pessoal da fila. No cinema não vai dar, mas de repente vou pra porta também, depois às locadoras quando sair o DVD, bem neurótico.