sábado, 5 de julho de 2008

O DEPUTADO FEDERAL

O pé esquerdo de Eurico Miranda veio envolto em bandagens e esparadrapos, que deixavam à mostra a unha do dedão, grande e torta. Uma luxação qualquer, que o fez usar bengala e passar mancando por mim e pelo senhor à minha frente, na ante-sala do gabinete da Presidência do Vasco, em São Januário. Atrás dele vieram um de seus filhos e Paulo Reis, então vice-presidente Jurídico do clube. Os três entraram no gabinete e fecharam a porta.

Uns dois minutos depois, tive a certeza de que o senhor à minha frente formara a zaga campeã do Mundo na Suécia, ao lado de outro vascaíno, quando a secretária perguntou o nome dele e ele, de maneira polida, educada, respondeu: Orlando Peçanha.

Foi recebido logo e também saiu do gabinete rapidamente, enquanto eu entrava, a tempo de ouvir a última fala da conversa. Vamos resolver aquele negócio, disse Eurico, e o cara que jogou no mesmo time que Pelé e Garrincha sorriu e assentiu com a cabeça, antes de sair da sala. Eurico ocupava a cabeceira de uma mesa grande, de uns vinte lugares. O pé esquerdo estava em cima de uma cadeira e achei melhor sentar do outro lado. Não vi mais as bandagens até que, no meio da entrevista, sem qualquer aviso prévio, adentra na sala Eduardo Viana, o Caixa D’Água, na época presidente da federação de futebol do Rio de Janeiro.

Não me lembro se meu entrevistado pediu licença. Sei que ele se levantou e, mancando, apoiado na bengala, foi com o Eduardo Viana pra uma parte mais reservada do gabinete. Fiquei no mesmo lugar, escutando as vozes dos dois sem entender nada, a não ser uma palavra ou outra, solta. Ouvi Caixa D’Água falar em Goitacáz e me lembro bem de uma frase do Eurico repetida três vezes, cada vez mais alto:

E se isso não é evasão de renda é o quê, Eduardo?

Não demorou para voltarem. Eduardo passou direto pela mesa e Eurico sentou de novo na cabeceira, com o pé em cima da cadeira, para continuar de onde havíamos parado.

Tinha jogo do Vasco naquele dia, contra o Goiás, e a entrevista acabou umas duas horas antes da partida. Fiquei por lá. Jantei no restaurante de São Januário e passei pela sala de troféus. Reverenciei o condor do Sul-americano, admirei a réplica da Libertadores e me deparei logo com as taças dos então três brasileiros. E fui lá no fundo, pra confirmar que a edição dos Lusíadas, de mil setecentos e alguma coisa, continuava no mesmo lugar, ao lado do malfadado diploma de vice mundial entregue pela Fifa.

O clube vivia ainda a ressaca daquela tragédia no Maracanã, no jogo em que foi campeão o time que não ganhou de nenhum adversário grande e que levou a decisão para os pênaltis confiando no goleiro, isso porque chegou à final no saldo de gols, graças a um gol inexistente. Já o Brasileiro ainda estava naquela fase de definir quem seriam os classificados para as oitavas-de-final e o início do jogo não foi nada animador.

O Goiás fez um a zero, aproveitando falha de nossa zaga claudicante, que comparada à atual subiria ao patamar de Bellini e Orlando. Do meio pra frente, o time tinha os Juninhos, Pernambucano e Paulista, o Euller e o Romário. Tinha também Pedrinho e Felipe, de vez em quando, e Viola no banco. O Juninho Pernambucano empatou, num chute de fora da área, e o Paulista virou, depois de passe açucarado do Romário. O time já parecia entrosado, jogando o fino, e até a defesa não mudaria muito, até porque suas falhas seriam fundamentais para o que viria dali a uns quarenta dias. Uma vitória única, épica, como jamais nenhum time conseguiu em todo o planeta, em todos os tempos, para dar mais uma amostra do que esse tal de Vasco é capaz.

Abaixo, a matéria.


Revista Istoé Gente, edição 66, de 6 de novembro de 2000

"Costumo dizer que é mais importante ser presidente do Vasco do que ser governador do Estado".

Conhecido por defender aos berros os interesses do Vasco da Gama, clube do qual é vice-presidente, o deputado federal Eurico Miranda (PPB), 56 anos, ignora a possibilidade de ser convocado pela CPI do Senado que investiga irregularidades no futebol brasileiro.
Integrante de outra CPI, a da Câmara Federal, que vai apurar o contrato da CBF com a Nike, Eurico já conseguiu barrar o requerimento que poderia revelar valores dos passes de jogadores.
Mesmo com numerosa coleção de desafetos entre políticos, torcedores e adversários, ele não muda seu estilo. Centralizador no comando do Vasco, onde sempre apareceu mais que o presidente do clube, Antônio Soares Calçada, Eurico é capaz de dizer que se acha mais importante que o governador do Estado do Rio.
Casado com Silvia Miranda, 50, e pai de quatro filhos, com quem divide uma cobertura em Laranjeiras, na Zona Sul, e uma casa em Angra dos Reis, no litoral fluminense, o deputado lança mão de uma frase que destoa da sua maneira truculenta de ser: “Faço tudo com amor”.

O senhor atenderá ao requerimento do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) para depor na CPI?
Quem é Antero Paes de Barros? Esse senador passou a ser conhecido porque falou no meu nome. Falar no meu nome dá holofote. Eles deviam ser inteligentes e me pedir para que eu colaborasse. É claro que não atenderia a uma convocação dessas. Não há um fato concreto.

Mas o Banco Central aplicou uma multa de R$ 1,3 milhão ao Vasco (por crime de defasagem cambial na venda do atacante Bebeto ao La Coruña, em 1992). O que o senhor tem a dizer?
E o que eu tenho a ver com isso? Não fui eu que participei da negociação (Eurico já era vice-presidente do Vasco na época). Apesar de eu ter certeza da legalidade da transação, não tive nada a ver. Mas eles não querem saber se, legalmente, fui eu que fiz a transação. Eles querem é aparecer em cima desse negócio. Ou você acha que alguma decisão que essa CPI tomar vai ter divulgação? Só vai ter divulgação se falar no Eurico. De repente eles querem me transformar na figura mais importante desse País, que eu não sou. Ou até sou.

É?
Tenho uma representação forte, que é a do Vasco da Gama. Costumo dizer que é mais importante ser presidente do Vasco do que ser governador do Estado. (Eurico ainda é vice-presidente do Vasco, mas deverá ser eleito presidente na eleição de novembro, já que Calçada desistiu da disputa).

Qual o caminho que as CPIs devem seguir?
As comissões vieram num momento bom para fazer um diagnóstico dos problemas do futebol brasileiro. Mas o que estamos vendo é o lado policialesco. Um negócio absolutamente nazista, de perseguição pessoal, de quererem atingir uma instituição como o clube. O clube é a célula do futebol e do esporte, mas é atingido como se fosse dirigido só por marginais, por pessoas que querem se aproveitar.

Quais os problemas do futebol?
As empresas estrangeiras querem tomar conta do futebol. Querem pegar a administração de um time, mas isso não vai dar certo. Você vê aí o Corinthians (ocupa hoje uma das últimas posições no campeonato brasileiro). O investidor pode investir, mas nunca dirigir porque ele não conhece isso. O torcedor não respeita o diretor que hoje é do Vasco e amanhã é contratado pelo Flamengo. Ele pode ser excepcional, mas tem de ter a formação no clube. O cara não aceita que um John da vida vá dirigir o Corinthians. Aí vêm uns políticos que não têm nada a ver com isso e querem fazer palanque em cima do futebol.

Mas o senhor se elegeu duas vezes graças ao futebol.
Não prometi água, habitação, luz, nada. Só defender o Vasco. Meu voto é na emoção, mas aliado à competência. Se o Vasco não tivesse sido campeão brasileiro em 1997 e da Libertadores em 1998 (ano da última eleição), eu não teria mostrado competência para ser reeleito.

Não vê problemas em participar de uma CPI sobre futebol, sendo um cartola?
Como eu posso não estar ligado a essa CPI? Você vai fazer uma CPI da Saúde e o médico não vai participar? Vai fazer uma da Reforma Agrária e o deputado ligado ao MST não pode participar? Por quê? Deve participar, até porque nada é decidido individualmente numa CPI. Vence a maioria.

O que achou da escolha de Antônio Lopes e Leão para dirigir a seleção?
Acho que o Ricardo Teixeira não tinha outra saída. O grande erro dele foi não ter o cargo do diretor de futebol antes. Ele deu ao treinador todos os poderes. O Luxemburgo não tinha ninguém acima dele, nem o presidente, porque o Ricardo Teixeira viajava mais do que ficava aqui. Então ele, Ricardo, viu que ia precisar daquela figura que não deixasse o treinador com a última palavra. E para isso escolheram um cara que conhece. O Lopes (ex-técnico do Vasco) tem essa formação. Aliás, a maioria desses caras que estão aí trabalharam comigo e, em termos de administração de futebol, não tenho dúvidas de que aprenderam alguma coisa.

Ainda defende a renúncia de Ricardo Teixeira?
Claro. Depois do que a seleção fez nas Olimpíadas, perder para a África do Sul e perder para Camarões com nove homens, ele tinha que ter vergonha na cara e sair fora. Ir tratar de outra coisa. O Brasil, com toda essa tradição, não pode perder para um time que começou a jogar bola há cinco anos. Por isso defendo o dirigente amador. Ele tem de ter esse sentimento, mas o pessoal que está aí é absolutamente frio. O Ricardo Teixeira, hoje, é um dirigente profissional.

E se o Vasco caísse para a segunda divisão?
Primeiro isso nunca iria acontecer. Mas, se acontecesse, jamais alguém iria me ver tratando de algum assunto de futebol ligado ao Vasco.

O Vasco participou das Olimpíadas com 83 atletas. Ficou alguma decepção com o desempenho da delegação brasileira?
Se ficou, foi pela falta de compreensão do que representa o projeto olímpico do Vasco. Já me disseram que fiz isso com fins eleitoreiros e até para lavar dinheiro, mas pouca gente sabe que, atrás de um atleta de ponta, como o Gustavo Borges, financiamos 800 atletas em todas as categorias da natação. O problema é que o brasileiro só quer saber de resultados imediatos. Não consegue entender que uma medalha de prata no revezamento 4x100 do atletismo é um feito histórico, que a quarta colocação do Sanderley Parrela nos 400 metros também.

O senhor não obteve credenciais para assistir aos jogos em Sydney. Ficou alguma mágoa do presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman, por isso?
Ele disse para mim que foi um esquecimento e até quis me dar as credenciais depois. Eu é que não quis. Acho o Nuzman bem intencionado, mas ele depende das confederações e dos patrocinadores. Quando entra um clube de massa como o Vasco, fica um certo temor do pessoal que controla as confederações. Só queria que o COB pelo menos divulgasse o clube dos atletas. Eu contrato uma Janeth, por exemplo. Ela vai para a seleção de basquete, veste a camisa da Caixa Econômica Federal e ninguém diz que ela é do Vasco. Na natação também. Você sustenta o Gustavo Borges o ano inteiro, mas nas Olimpíadas ele aparece como atleta dos Correios.

Sua imagem pode ter prejudicado o projeto olímpico?
Não sei se foi por minha causa. A minha vida tem sido devassada desde que eu me entendo por gente. Nesse país você não pode ser bem casado e não ter problemas de família. É uma merda. Se você não prevarica, não parte nas noitadas, não tem vícios e não é carola, alguma coisa está errada. Aí você consegue alguma coisa, logo acham que foi roubado, só que você não tem três casas para sustentar e não gasta com vícios.

Como no episódio do roubo da bilheteria (Em 1998, Eurico foi assaltado na portaria de seu prédio quando levava para casa R$ 70 mil da renda de um jogo do Vasco em São Januário)?
Nunca tinha levado a renda e nunca mais levei. Aquilo aconteceu por acaso, num dia em que o tesoureiro do clube não pôde levar. Pareceu até coisa armada.

O senhor sempre disse que o craque tem que ter privilégios. Arrependeu-se no caso do Edmundo?
O Edmundo não soube aproveitar as condições que dei a ele. O Romário, por exemplo, tem mais vivência e sabe aproveitar. Mas não me arrependo. Até traria o Edmundo de novo.

Mesmo com o Romário no Vasco?
Com o Romário, não.