terça-feira, 5 de janeiro de 2010

HONÓRIO, O GURGEL, E O PARALELEPÍPEDO MOLHADO

A situação seria bem estranha se não tivesse partido do Palhoça, sujeito polivalente, que já trabalhou como segurança em show do Oswaldo Montenegro e baixista de banda de pagode, de calça branca e camisa cintilante azul bebê, ele que nem gosta de samba. Dessa vez, o caso envolvia uma máscara de mergulho especialíssima, cujo visor era uma lente para alguns graus de miopia.

Animado com as aulas de um curso de mergulho, onde mostrou desenvoltura nos exercícios da piscina e aprendeu todas as técnicas necessárias para admirar as maravilhas do fundo do mar, Palhoça mandou fazer a máscara. E já tinha pagado tudo, as aulas do curso e a máscara, quando o médico de sempre lhe disse que, se ele insistisse com essa história de mergulho, poderia deixar o convívio dos amigos com rapidez impressionante, talvez na primeira incursão aos domínios de Netuno.

Diante daquele sábio doutor, do outro lado da mesa do consultório, a máscara virou artefato inútil, lembrança de uma vontade não saciada. Só que não tinha custado barato e, pior, não tinha sido nem entregue. Questão de honra, portanto, pegar aquele material precioso, caríssimo, nem que fosse apenas para assistir ao Discovery Channel com ele. E como Honório nunca deixava um amigo na mão, lá fomos eu, o Palhoça e a Pequena Espevitada, moça cheia de charme, muito próxima na época, atrás do “especialista” em construir máscaras de mergulho para míopes, que já tinha parado de atender telefonema há uns bons quinze dias.

Tudo o que tínhamos era o endereço da casa do sujeito, em Petrópolis, num bairro chamado Samambaia, do qual eu nunca ouvira falar, mesmo tendo freqüentado a aconchegante cidade serrana desde muito pequeno até os 20 anos. A viagem de ida foi tranquila. Honório teve atuação espetacular, desde a saída do Rio, passando pela subida da Serra, pela parada obrigatória do croquete do alemão, por vielas nunca antes visitadas da terra de Dom Pedro II, perguntando aqui e ali, até chegar na frente da casa do “especialista”.

Ficava no alto de uma ladeira com duas fileiras de pedras e grama em volta, por onde deveria entrar e sair, todo dia, o carro do dono da casa. Chamamos, batemos palmas, buzinamos, e eis que assoma, no alto da ladeira, um sujeito calvo, de cabelos amarelos e ligeiramente mais baixo que um urso polar.

Goleiro de handebol nos tempos de estudante, e de futebol até os dias de hoje – desde a glória maior nas olimpíadas do colégio, quando pegou, sim, pulando num canto mas deixando a perna esticada, o pênalti do craque da turma, do bonitinho da escola –, Palhoça subiu sozinho. Eu e a Pequena Espevitada ficamos ao lado do carro, eu de braços cruzados, apoiado no Gurgel e fazendo cara de peça de Gerald Thomas.

Lado a lado, e vistos de baixo da ladeira, Palhoça e o “especialista” tinham um quê de Danny De Vitto e Arnold Schwazenegger naquele filme em que os dois interpretaram irmãos gêmeos. A conversa foi rápida, de poucos gestos e fala mansa, e logo o Palhoça desceu, ainda sem a máscara mas de posse de uma garantia escrita de próprio punho pelo “especialista”, num papel de pão em que se lia, apenas e tão somente, o endereço da casa onde estávamos.

Concordamos, os três, que a garantia tinha valido a viagem, até porque quem escrevera aquele endereço, no papel de pão, poderia muito bem ter um rifle em cima da lareira, quem sabe embaixo de uma cabeça de alce ou, por que não, de urso polar. Que a vida seguisse, que fosse feita a distribuição de renda involuntária, se assim era a vontade do destino.

Imbuídos desse sentimento nobre, de profundo desapego, decidimos relaxar e aproveitar as maravilhas da joia do Império, o palácio das pantufas, os passeios de charrete, o lanche na Colombo, a carne da churrascaria Maloca, com seu teto de palha, a casa de Santos Dumont e muito mais, até a volta ao Rio, de início pela estradinha de paralelepípedos com um canal no meio, os paralelepípedos molhados, todos, pela garoa fina que quase não caía.

Honório vinha devagar, cauteloso, com todo o respeito devido ao paralelepípedo molhado, mas a época era de salário ridículo e os pneus não estavam lá muito confiáveis. Numa das curvas, e contra a vontade própria (tenho certeza), Honório decidiu se livrar do meu comando. Rodou completamente descontrolado, seguramente mais de 180 graus, e só parou na beira do canal, graças ao meio-fio, alto, sólido, exemplo digno da competência dos pedreiros nacionais, construído talvez durante o governo de nosso melhor imperador, que segurou as duas rodas traseiras do Gurgel, interrompendo o descontrole. Do banco de trás, Palhoça repetia esporadicamente: Eu vi o canal. Eu vi o canal. Falou isso ainda algumas vezes no bar, enquanto bebíamos a cerveja de emergência, antes de pegar a estrada de volta, e aqui que a Lei Seca me perdoe, porque foi uma cerveja só e sem ela não haveria a menor condição de descer uma serra cheia de curvas depois de ficar tão perto das águas fétidas daquele canal.

A viagem foi tensa, lógico, mas chegamos sãos e salvos, a Pequena Espevitada dormindo no banco do carona, eu com dor no pescoço, pelo receio de cada curva, e o Palhoça com o endereço do “especialista” no bolso, no papel de pão. Todos nós muito felizes, bem longe daquele canal.