domingo, 31 de janeiro de 2010

MADRUGADA ADENTRO

O primeiro erro foi morar com a mãe aos 24 anos. O segundo, deixar que ela atendesse o telefone naquela noite de sexta-feira, você recém-chegado do trabalho, de banho tomado, jantando em frente ao vasto noticiário sobre a morte de Renato Russo no Jornal Nacional. A mãe atende, fala Um momento e chama pelo teu nome. Já era. Do outro lado da linha, o chefe de reportagem, com ares de âncora do Leão Camarada, diz que você acaba de ganhar duas folgas na semana seguinte, qualquer dia, é só escolher. Ao fundo, escutam-se risadas, de colegas que permanecem na redação àquela hora, no pescoção, e você já sabe que vem coisa aí.

A pauta era a melhor de todas, chegou a dizer o chefe de reportagem, e o pessoal atrás rindo. Consistia, a pauta, em passar a madrugada, de 1h às 7h, no Cemitério do Caju, lá no fundo dele, pertinho do Complexo da Maré, no crematório onde jazia, muito bem guardado, inacessível, o corpo de Renato Russo. A cerimônia de cremação estava marcada para a manhã seguinte, às 10h, e o carro do jornal nos deixou no local à 1h15, mais ou menos. Nos deixou e partiu. O combinado era que o motorista voltasse às 7h. Ficamos em frente ao crematório eu, o fotógrafo da madrugada e vinte ou trinta sujeitos, todos homens, que lá estavam por livre e espontânea vontade, no escuro, a pé, no cemitério colado ao Complexo da Maré.

Um deles não tinha uma das pernas. Dizia-se poeta, chegara de muletas, sozinho, tinha o nome da banda tatuado num dos braços e era dos mais falantes, porque o Renato era tudo, tudo pra ele. O cara era o cara, dizia o sujeito, que morava em favela, sim, e era poeta mas se virava mesmo vendendo uns negócios, e pra ele o Renato era tudo. E cantavam todos, ao som de um violão, É preciso amar ou Quando o sol nascer, e conversavam também, riam. O faxineiro contou que tinha errado o caminho, já de noite, e topou com traficantes da Maré, três deles, todos de pistola na mão. Teve que deixar o boné com eles, e ria, todo mundo ria no Cemitério do Caju, às três da manhã. O menino de lenço no pescoço, os braços finos, brancos, dizia que simplesmente não podia estar em outro lugar, não podia, não naquele momento, e também pegou três ônibus, também morava longe, também não tinha grana. O único que tinha dinheiro não varou a madrugada. Chegou de carro, lá pelas 4h30, parou em frente ao crematório e saiu, deixando a mulher no banco do carona, de braços cruzados. A gravata vinha abaixo dos três botões abertos da camisa, que estava pra fora da calça. Ele primeiro perguntou se era ali que o Renato Russo estava e depois só falou que tinha que ver o cara. Tinha que ver o cara, só isso, e falou duas ou três vezes até a mulher chamar, alto, e ele entrar no carro. E foi embora.

Depois não chegou mais ninguém até o dia clarear. Ficamos eu, o fotógrafo da madrugada e os vinte ou trinta sujeitos, que sumiram na multidão quando o velório começou a encher, às 7h, e o carro do jornal voltou, e dali para a redação, onde o tamanho da matéria, da melhor pauta, já estava estipulado. Era esse aí debaixo.

Jornal do Brasil, edição de domingo, 13 de outubro de 1996

“Sou fanático pela Legião, mas jamais vi um show deles, por falta de dinheiro. Prometi a meus amigos que ficaria perto do Renato, mesmo sabendo que seria difícil ver o corpo”

Nem mesmo a proibição de ver o corpo de Renato Russo, imposta pela família do compositor, foi suficiente para desanimar as 25 pessoas que passaram a noite no crematório do Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, Zona Portuária. Durante toda a madrugada de ontem, o pequeno mas fiel grupo de fãs do vocalista da Legião Urbana permaneceu em frente ao crematório, cantando e tocando no violão os maiores sucessos da banda brasiliense. No último adeus a Renato, seus admiradores mais fiéis acabaram sendo os jovens das classes sociais mais baixas, que não se incomodaram em pegar até três ônibus para passar a noite perto do corpo do ídolo.
Ao contrário da histeria característica dos enterros de artistas famosos e dos barulhentos shows da banda liderada por Renato Russo, o clima no cemitério durante a madrugada era tranqüilo. O grupo de fãs enfrentou a madrugada sem causar tumulto, sem se incomodar com a falta de conforto. “Praticamente ninguém trouxe comida ou bebida, mas a intenção de todos aqui é ficar ao lado do Renato. Ninguém vai abandona-lo”, afirmava o faxineiro Valdeir da Silva Fonseca Nunes, de 24 anos, que saiu de Piratininga, em Niterói, para se despedir do ídolo, e quase se complicou na ânsia de ficar perto de Renato Russo. O faxineiro errou o caminho para o crematório e acabou entrando na Favela da Chatuba, ao lado do cemitério, por volta das 23h. Abordado por traficantes, Valdeir foi liberado após deixar seu boné na favela.
Entre os admiradores do compositor que enfrentaram as maiores dificuldades para passar a madrugada no crematório, o mais determinado acabou sendo o poeta Émerson Gonçalves Leonardo, de 21 anos. Deficiente físico – ele não tem a perna esquerda –, Émerson saiu sozinho de Marica às 13h de anteontem para, quatro horas e três ônibus depois, chegar ao cemitério. “Sou fanático pela Legião, mas jamais vi um show deles, por falta de dinheiro. Prometi a meus amigos que ficaria perto do Renato, mesmo sabendo que seria difícil ver o corpo”, contou o fã, que tem o nome da banda tatuado no braço esquerdo.