domingo, 18 de dezembro de 2011

NO MESMO DIA II

Sérgio Britto e Joãozinho Trinta morreram no mesmo dia. Ontem.
A entrevista com o ator foi feita na casa dele, em Santa Tereza. Já com o carnavalesco foram duas entrevistas no mesmo lugar, no antigo barracão da Acadêmicos do Grande Rio, na Gamboa. A segunda foi para uma série da revista, em que a vida de alguém era contada em capítulos, um por semana. A última matéria, lá embaixo, foi o primeiro capítulo dessa série.

Revista Istoé Gente, edição 229, de 22 de dezembro de 2003

“Disse a eles: ‘Não se impressionem com o tombo. Foi de propósito. Caio todo dia num lugar’. E saí de cena.”

Além de atacar os pulmões, a anemia congênita herdada da família por Sérgio Britto, 80 anos, provoca um desequilíbrio inesperado, como um empurrão. Por conta disso, o ator teve cinco pneumonias em 2001. Curou todas, mas não escapou do “empurrão” no mês passado, quando encenava Sérgio 80, na lona cultural de Guadalupe, subúrbio carioca. Diante de 700 pessoas, ele caiu do palco e fraturou quatro costelas. Após alguns segundos de silêncio, levantou-se e, sozinho, subiu os quatro degraus de volta. Sob aplausos, avisou que continuaria a peça.
A determinação mostrada no episódio não é muito diferente da que fez o jovem estudante do quarto ano de medicina decidir pelo teatro. Mesmo que até hoje ele não saiba por que aceitou entrar no Teatro Universitário de Jerusa Camões, em 1945. Acompanhando um amigo à sede da UNE (União Nacional dos Estudantes), no Rio, o rapaz tímido que começava a admirar as peças de Ziembinski e Nelson Rodrigues, mas ainda preferia o cinema, foi surpreendido por Jerusa. “Ela me achou simpático e perguntou se eu queria fazer teatro. Acho que o ‘sim’ que falei estava contido em mim há tempos”, conta.
Na primeira peça, Romeu e Julieta, Sérgio estreou junto com Sérgio Cardoso, ator morto em 1972. Na época, o teatro ainda era brincadeira para o médico residente que dividia seu tempo entre os ensaios e o trabalho no pronto-socorro do Hospital Souza Aguiar. Com os colegas da segunda peça, Hamlet, não era muito diferente, com exceção de Sérgio Cardoso. “Ele já era um ator. O Sérgio foi uma inspiração, o culpado de eu estar fazendo teatro”, resume Britto.
Quatro dias antes da estréia de Hamlet, em 6 de janeiro de 1949, o ator se formava em Medicina, mas nunca foi buscar o diploma. Sucesso no Rio, a peça viajou por São Paulo, e foi em Campinas que Sérgio Britto abandonou a medicina. Pressionado pelo pai, o funcionário público Lauro, teve com ele a conversa definitiva:
– Você está há três meses fazendo Hamlet. E a medicina?, quis saber o pai.
Após uma noite sem dormir, o ator respondeu no dia seguinte, dizendo que iria fazer teatro.
– Mas você disse que não era ator, retrucou seu pai.
– Também acho que não sou, mas vou tentar ser, disse Sérgio.
Logo depois, Britto e Cardoso montaram, com outros amigos, o Teatro dos 12, que marcou o início da carreira profissional dos dois. As dúvidas sobre se teriam o apoio da família se dissiparam na primeira montagem do grupo, um novo Hamlet. “Faltou o bilheteiro um dia e meu pai o substituiu”, conta Sérgio.
Por falta de dinheiro, a companhia durou um ano. Convidado para interpretar em São Paulo, em 1950, Sérgio participou da fundação do Teatro de Arena, de José Renato Pécora. Depois ingressou na companhia teatral de Maria Della Costa, onde encontrou Gianni Ratto, o diretor que em 1954, em O Canto da Cotovia, de Jean Anouilh, o faria considerar-se, definitivamente, um ator. Jovem e bonito, Sérgio foi escalado para viver o Delfim, feio e frágil. Seguindo os conselhos do diretor, conseguiu deformar o próprio corpo, livrando-se do estigma de galã. “O Gianni trabalhou em mim uma emoção verdadeira, não em cima da minha beleza.”
Em São Paulo, Sérgio também conheceu Fernanda Montenegro e Fernando Torres, num período rico em idéias e diversão. Após cada espetáculo, os atores jantavam e caminhavam a pé, de madrugada, para tomar café no ex-tinto Jeca, na esquina da Rua Ipiranga com Avenida São João. Compravam os jornais do Rio e iam dormir, com o dia claro. “Foi um período de grandes e maravilhosas memórias, quando começamos a sonhar uma companhia”, lembra Fernanda Montenegro.
Montado com Fernanda, Fernando, Gianni e, mais tarde, Ítalo Rossi, o Teatro dos Sete começou a surgir num momento difícil para Sérgio Britto. Com a saída de Gianni Ratto da Cia. de Maria Della Costa, o ator se viu obrigado a optar entre duas pessoas queridas. “Foi terrível, mas não traindo a Maria, trairia a mim mesmo.”
Depois de uma passagem pelo Teatro Brasileiro de Comédia, no Rio, Sérgio e seus futuros sócios decidiram montar o Teatro dos Sete. Para isso, o antigo galã precisou usar seus dotes de sedução. Como o grupo acumulava as peças com o trabalho na televisão desde 1956, no Grande Teatro Tupi, Sérgio, que dirigia o programa, entrava no início pedindo contribuições para a futura companhia. “Fui um sedutor canalha. Dizia: ‘Vocês vão poder nos assistir de perto, ir nos bastidores para um autógrafo, quem sabe um beijinho’, uma conversa muito safada”, diverte-se.
Na estréia de O Mambembe, em 1959, o Teatro Municipal do Rio estava lotado. Entre novos sucessos e um fracasso de público, O Cristo Proclamado, de Francisco Pereira da Silva, o grupo chegou ao Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, em 1961, quando Sérgio acumulou as maiores vaias da carreira. Na pele do jornalista Amado Ribeiro, dizia falas como “minha empregada fez aborto com talo de mamona. Tá num morre, não morre”. A vaia era estrondosa. “Com o tempo eu ficava esperando a vaia”, conta o ator. Mas com a renúncia de Jânio Quadros, o público caiu muito.
Por sorte, havia a televisão, apesar das dificuldades das gravações ao vivo. Numa delas, Sérgio dirigia Fernanda Montenegro. A cena terminava com a atriz olhando pela janela, com malícia, mas o diretor de câmera, Mário Provenzano, acostumara-se a finalizar cada ato com uma mulher chorando. “A câmera ficou quase um minuto na Fernanda, até que falei para ela chorar”, lembra Sérgio.
No palco, um dos maiores apertos aconteceu no Irã, em 1974, durante apresentação dos Autos Sacramentales de Calderon de La Barca, na Planície das 50 Colunas, monumento da antiga Pérsia. Com a tensão da estréia agravada pela proibição do nu dos atores, imposta pelo xá Reza Pahlevi, Sérgio acabou cuspindo durante a primeira fala o pivô que substituía um dente recém-perdido. “Continuei o espetáculo e, quando tudo tinha acabado, achei o pivô incrustado numa madeira, na platéia vazia.”
Ao longo da carreira, o ator só não foi assíduo no cinema. Em 1951 e 1952, fez roteiro e assistência de direção nos estúdios Maristela e Multifilmes, em São Paulo, mas a falência dos dois mudou sua trajetória. “Acho que o cinema não tinha que vir para mim”, diz Sérgio, que foi sondado para o lugar de Paulo Gracindo em Terra em Transe, de Glauber Rocha, e lembra-se de ter feito dois filmes, Society em Baby-doll e O Desafio.
Se o cinema não vingou, a paixão pelo teatro marcou a vida do ator a ponto de fazê-lo, mesmo sem muita convicção, tentar o suicídio logo no início da carreira. Com 23 anos, Sérgio acumulava a dúvida entre teatro e medicina com a descoberta da homossexualidade, hoje admitida publicamente pelo ator. Embriagado na volta de um baile de Carnaval, cortou-se com uma gilete. “Não foi com a fúria de quem quer se matar”, admite o ator, que tirou suas lições do episódio. “Fiquei sábio depois daquele dia.”
E era sobre a sabedoria de envelhecer o texto dito por Sérgio Britto nos 10 minutos finais de sua apresentação em Guadalupe, quando a dor das costelas quebradas, que não o incomodara até ali, começou a latejar com força. Com a determinação mostrada em 58 anos de carreira, levou o espetáculo até o fim, e ainda brincou com a platéia antes de se despedir, quase sem agüentar mais de dor. “Disse a eles: ‘Não se impressionem com o tombo. Foi de propósito. Caio todo dia num lugar’. E saí de cena.”

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Revista Istoé Gente, edição 187, de 3 de março de 2003

"Antes da isquemia tive milhões de avisos. Me sentia mal, tinha uma dor no peito que levou quase 10 anos. Hoje não dou conselhos, porque ninguém escuta. A quem eu vejo repetindo meus erros, desejo boa isquemia. Porque sobrevivi a uma e mudei."


O lado direito do corpo está paralisado desde a isquemia cerebral sofrida em 1996, mas é com desenvoltura que o carnavalesco Joãosinho Trinta circula pelo barracão da Acadêmicos do Grande Rio, escola que defende há dois anos. Afinal, a rotina de preparar um desfile de escola de samba acompanha há 40 anos o filho da operária Júlia Jorge Trinta e do mestre de obras José de Almeida Trinta, morto quando Joãosinho tinha 2 anos.
Antes de fazer história ganhando cinco Carnavais seguidos, de 1974 a 1978, no Salgueiro e na Beija-Flor, o maranhense de São Luís realizou o sonho de ser bailarino do Teatro Municipal cinco anos após sua chegada ao Rio, em 1951, sozinho num navio. Hoje, ele tem uma explicação bem-humorada para sua ligação com a maior festa popular do Brasil. “Nasci em novembro. Portanto, fui concebido em fevereiro. Sou filho do Carnaval.”

Em 40 anos, qual foi o seu Carnaval mais marcante?
O de 1989 na Beija-Flor, com o enredo Ratos e Urubus. Apesar de não ter ganho (a Beija-Flor perdeu o título para a Imperatriz Leopoldinense por meio ponto), as pessoas me falam desse desfile até no Exterior. Ter entrado para a história compensa. Lamento somente ter esquecido de mostrar o lixo de algum jurado do desfile, porque mostrei os lixos de diversos setores da sociedade.


Naquele ano, a Beija-Flor saiu com uma imagem do Cristo Redentor coberta por ordem da Justiça. O que acha dessa nova polêmica da escola, que queria mostrar Jesus atirando no diabo?
Não tomei conhecimento, mas posso perguntar: será que não estão querendo reeditar a polêmica?

Ultimamente seus desfiles não causam tanta polêmica. Por quê?
Nunca busquei sensacionalismo. Ele surge de vez em quando, mas a intenção não é essa. É claro que se busca no Carnaval o inusitado, algo que possa surpreender como o astronauta sobrevoando a avenida no último desfile da Grande Rio. Mas a polêmica quem faz são os outros.

O apoio de empresas ao desfile tirou a identidade do Carnaval?
Esse tipo de pensamento é romantismo barato. Como manter um espetáculo grandioso sem estrutura? Quem fala isso nunca assistiu a um desfile de escolas do quinto grupo nos subúrbios. As escolas cariocas não são apenas as da Marquês de Sapucaí que a tevê mostra. Para mostrar tem de ser um espetáculo internacional, precisa estrutura. A Grande Rio está dando um exemplo de como trabalhar com a colaboração de empresas sem se deixar influenciar pelo merchandising.

De que forma isso ocorre?
Esse ano a Vale do Rio Doce está colaborando com a escola, mas tivemos cuidado de evitar merchandising no desfile. Não precisa. A mineração no Brasil é um assunto vasto. É só 
saber fazer, porque não dá para dispensar o apoio das empresas. Só com a verba que a Liga das Escolas de Samba repassa hoje, fica difícil de fazer, com o dólar disparando. Algumas escolas podem ter exagerado no merchandising em outros desfiles, o que gerou comentários.

A frase “pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”, afinal, é sua ou do jornalista Elio Gaspari?
Me arrependo de não ter guardado um artigo do Elio Gaspari no jornal no ano passado, em que ele deixava claro que a frase é minha.

Continua pensando assim?
Continuo. Me referi não ao luxo superficial de riqueza, mas ao luxo que o povo gosta, da emoção, alegria, criatividade. E falava dos pseudo-intelectuais, que diziam que eu não retratava a realidade do Brasil. A miséria existe mas o Brasil não é miserável. Tem riquezas para dar e sobrar. Quem torna esse país miserável são políticos, corruptores e ladrões, homens contados a dedo.

A quem se refere exatamente?
Preciso citar? Não preciso. Vocês da imprensa sempre denunciam.

Qual o real poder de um carnavalesco na escola?
A Grande Rio tem um patrono, um presidente executivo e uma diretoria, que administram a escola. Na parte artística fica tudo comigo. Chego no barracão às 9h e, quando precisa, fico até de madrugada.

O que mudou após a isquemia?
Tinha padrões errados tanto de alimentação como com o meu corpo. Não descansava, não me alimentava direito. Hoje como regradamente e faço a sesta religiosamente. Não atendo ninguém depois do almoço e ainda tomo um vinho tinto por recomendação médica, porque é benéfico para o coração. Também fiz reciclagens mentais depois da doença.

Que tipo de reciclagens mentais?
Tinha bloqueios e com a isquemia fui entender muita coisa por intuição. Jung dizia que muita gente morre antes de ter nascido completamente, porque carrega as mazelas da infância e até de vidas passadas, e não recicla nunca. Envelhece porque carrega um fardo pesado. Esse ano faço 70 anos e estou me reciclando dos problemas que tive na vida. Depois de uma isquemia e duas pontes de safena e uma mamária (em 1997), me sinto melhor do que há 40 anos.

Teve medo de morrer?
Nunca. A isquemia te dá uma noção de que você está perigando, que não é brincadeira. Mas no hospital sua intuição lhe esclarece muito, você entende os conselhos que te davam e, principalmente, os conselhos do seu corpo. Antes da isquemia tive milhões de avisos. Me sentia mal, tinha uma dor no peito que levou quase 10 anos. Hoje não dou conselhos, porque ninguém escuta. A quem eu vejo repetindo meus erros, desejo boa isquemia. Porque sobrevivi a uma e mudei.

A paralisia influi no seu trabalho?
A isquemia paralisa metade do corpo. É um certo esforço no desfile, mas nem sinto diante da emoção do povo. No barracão, antes eu metia a mão na massa, hoje sou forçado a delegar poderes.

Pensa em parar?
Planejo viver mais 70 anos. Pretendo fazer uma cirurgia no cérebro a laser e tenho certeza que os movimentos voltarão ao normal. Não sei que tipo de Carnaval farei nos próximos 70 anos, mas quero continuar vivo. Trabalho com o divino. A palavra divino vem do verbo advir. Então divino para mim é o futuro, o que há de vir.

Quando entrou na Beija-Flor tinha conhecimento que ela era financiada pelo jogo do bicho
Claro que tinha. Graças a Deus o bicho financiava, porque o governo, que devia tomar conta do evento que traz turistas e melhor representa o Brasil lá fora, nunca fez nada. O governo foi relapso, os banqueiros do jogo do bicho não foram.

Não fica constrangido em ter o Carnaval financiado pelo jogo do bicho?
Constrangido eu deveria ficar diante dos governos que não são sensíveis ao Carnaval. As escolas estavam morrendo e só os banqueiros do bicho tomaram conhecimento. Se não fossem eles, ninguém estaria lamentando o fim do Carnaval porque simplesmente ninguém iria conhecer essa festa maravilhosa que é o desfile das escolas de samba.

Como começou no Carnaval?
Em 1963 fui ser assistente de Arlindo Rodrigues no Salgueiro. Tinha know-how de montagem de óperas, porque vinha do teatro. Ainda como bailarino me interessava pela cenografia e pelo figurino, tanto que nos anos 70 cheguei a montar óperas no Teatro Municipal, como Aída e O Guarani.


Você sofreu preconceito por ser bailarino?
Da família, não, mas claro que teve. Era tão apaixonado pela dança que não entendia a reação preconceituosa das pessoas.


Qual foi seu primeiro enredo?
Em 1974, fui campeão com O Rei de França na Ilha da Assombração, no Salgueiro. No ano seguinte fomos bi, mas já estava perturbado pelas mudanças sociais no Rio e principalmente no Morro do Salgueiro. 

Que mudanças?
Vi um garoto de 12 anos, que tinha o apelido de Pedro Marreco e era presidente da ala das crianças da escola, virar o maior bandido do morro em dois anos. A bandidagem e o tráfico tinham se instalado e vi que as crianças eram as mais atingidas. Queria fazer um trabalho social, porque naquela época tive a intuição do inferno que o Rio ia se tornar, mas a diretoria do Salgueiro achava que só fazer Carnaval já era demais.


Por isso foi para a Beija-Flor?
O contrato que fiz com o Anísio previa a obra social. Em 1976 vencemos o Carnaval numa época em que só as quatro grandes (PortelaMangueiraSalgueiro e Império Serrano) ganhavam. Quando saí da escola, 17 anos depois, estava instalada uma creche para 450 crianças, um educandário 
para 500 e um centro comunitário, entre outras melhorias. Agora na Grande Rio também fazemos um trabalho social intenso, com diversos cursos profissionalizantes.


Quantos meninos tirou do tráfico de drogas com os trabalhos sociais nas escolas de samba?
Não sei especificar quantos, mas já ajudamos centenas. Isso porque só trabalhávamos com crianças carentes e já delinqüentes. Quem não se recuperou, morreu porque a expectativa de vida no tráfico é muito pequena. Quem ficou conosco sobreviveu e mudou de vida.


A motivação hoje é a mesma?
Trabalho ainda com o Carnaval como quem cumpre uma missão importante para o Brasil. Enquanto o mundo se prepara para uma guerra de cobiça, onde vai predominar a morte, aqui no Brasil estamos preparando a guerra da alegria.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Revista Istoé Gente, edição 237, de 23 de fevereiro de 2004

“Ficou uma fantasia sei lá de quê, mas entrei no baile.”

Do formigueiro no quintal ao carcomido muro da casa onde passou parte da infância, em São Luís, tudo era motivo para despertar a imaginação do menino João Clemente Jorge Trinta. Aos cinco anos, o filho da operária tecelã Júlia Jorge Trinta passava horas observando o trabalho das formigas. Já os buracos do muro se transformavam, na visão do garoto, em palácios, numa antecipação do que a mente do futuro carnavalesco criaria nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. “Minha infância foi cheia de surpresas. Me assombrava a todo momento com pequenas descobertas”, lembra Joãosinho.
Quarto de cinco irmãos (três mulheres e o caçula), João não se lembra do pai, o mestre-de-obras José de Almeida Trinta, morto quando o filho tinha dois anos. Nascido a 23 de novembro de 1933, numa casa da Praça Silva Jardim, morou também na Rua do Alecrim e na Rua da Paz durante a juventude marcada pelas dificuldades financeiras, mas facilitada pelo esforço da mãe mesmo quando a comida era pouca. “Quando só tinha restos de arroz, achava tão gostoso que não sentia a tragédia”, conta ele.
Entre as lembranças da Praça dos Remédios, da igreja no mesmo local e dos coretos da antiga São Luís, o carnavalesco se recorda especialmente das tardes passadas no Teatro Arthur Azevedo. Com 12 anos, já era freqüentador assíduo do local, onde assistia a ensaios de companhias como a de Procópio Ferreira. Apesar do começo trabalhando com teatro amador e teatro de bonecos, por volta dos 16 anos, foi o balé que atraiu definitivamente o futuro carnavalesco para o meio artístico. “São Luís nem tinha academia de dança. Não tenho justificativa, mas essa minha paixão pela dança foi muito forte”, recorda Joãosinho.
Tão forte que o jovem freqüentador das rodas de intelectuais da capital maranhense, que reuniam o ex-presidente José Sarney e o poeta Ferreira Gullar, entre outros, aproveitou a primeira oportunidade para viajar ao Rio de Janeiro, sonho de todo aspirante a artista da época. Promovido de office-boy a auxiliar de escritório de uma financeira, a Cosmos, João conseguiu uma transferência para o Rio. Com suas economias, comprou a mais barata passagem de um velho Ita do Norte, o barco que costumava levar retirantes do Norte e do Nordeste para a então Capital Federal.
Antes de o navio partir, porém, teve um susto e uma grata surpresa. Instalado no fundo do Ita do Norte, foi chamado à sala do capitão. O medo de ser retirado da embarcação por ser menor de idade durou até a chegada diante do comandante, que, mostrando um documento, informou ao passageiro que ele deveria mudar de lugar. “Ele me
disse que, por ser menor de idade, estava sob sua responsabilidade e iria viajar num camarote ao lado do dele”, conta o carnavalesco.
Após 20 dias de um viagem cheia de mordomias inesperadas, Joãosinho Trinta desembarcava no Rio em pleno domingo do Carnaval de 1951. Mal levou suas coisas para a casa de dona Zizi, maranhense amiga da operária Júlia Trinta, foi ao Teatro Municipal do Rio com um firme objetivo: participar do baile que seria realizado ali no dia seguinte e era um dos maiores acontecimentos do Carnaval.
Após conversar com um eletricista do teatro, obteve a promessa de ter a entrada facilitada no baile caso aparecesse com uma fantasia. Uma intensa busca por trapos velhos na casa de dona Zizi resolveu o problema, mesmo que até hoje o carnavalesco não saiba definir o que representava a primeira fantasia que criou. “Ficou uma fantasia sei lá de quê, mas entrei no baile.”
Passado o Carnaval, a primeira providência foi se matricular numa academia de dança, mas o sonho de ingressar no corpo de baile do Teatro Municipal só seria realizado cinco anos depois. Aprovado em concurso, Joãosinho estrearia como bailarino no fim de 1956, como parte do elenco da ópera Coventina. Antes disso, ainda amargaria duras experiências.
Assim que passou no concurso do Municipal, João pediu demissão da financeira. Só não contava com a demora em ser chamado para o balé. No primeiro mês ainda conseguiu pagar o aluguel da pensão onde morava, no Catete, zona sul carioca. Despejado, passou três meses dormindo no bonde que ia do centro da cidade ao Leblon, na zona sul. “Pagava uma passagem e o condutor me deixava dormir no banco de trás, indo e voltando pelo trajeto”, lembra.
Apesar de se alimentar com as amêndoas da Praça Paris, na Glória, João mal saciava a fome. Já desesperado e sem forças, lembra-se de ter suplicado a ajuda de Deus sentado num banco quando o vento provocado pela passagem de um ônibus pelo local levou aos seus pés uma nota de 50 cruzeiros. “Foi um momento de uma súplica e de um atendimento. Fiquei aberto para a energia altamente sábia de Deus”, conta o carnavalesco, que logo depois foi chamado para o Municipal.
Não demorou para que o bailarino começasse a se interessar pela montagem dos espetáculos. Ainda no fim da década de 50, virou chefe do guarda-roupa, cargo que passou a acumular com o trabalho na escola de samba do Salgueiro, onde chegou em 1963. Levado por Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona, dois ex-cenógrafos do Municipal, Joãosinho participou da equipe que revolucionou o Carnaval carioca. “O Carnaval era o chamado samba do crioulo doido. O Pamplona e o Arlindo organizaram mais o desfile e começaram a fugir dos temas oficiais para abordar o negro, por exemplo”, explica o carnavalesco.
Com a experiência de quem chegara a montar óperas no Municipal como Aída, no fim da década de 60, Joãosinho deu sua contribuição à equipe numa época em que preparar um desfile era bem mais difícil que nos dias atuais. “Hoje as técnicas, os materiais, está tudo codificado, mas naquele tempo não tinha nada. Tivemos de descobrir tudo”, explica ele que, após a ida de Pamplona e Arlindo para a Mocidade Independente, em 1973, assinou sozinho o Carnaval do Salgueiro de 1974. Com o enredo O Rei de França na Ilha da Assombração, Joãosinho Trinta conquistou seu primeiro Carnaval e abriu seu caminho.