domingo, 7 de agosto de 2016

PITANGUY

Anteontem, numa cadeira de rodas, ele carregou a tocha olímpica. Ontem, morreu em casa, à tarde, aos 93 anos, de parada cardíaca. A entrevista abaixo foi feita na clínica dele, em Botafogo. A foto dele é do Leandro Pimentel.

Revista Istoé Gente, edição 113, de primeiro de outubro de 2001

"Tudo muito iluminado, e no meio dessa confusão toda me veio um pensamento que dizia mais ou menos assim: 'esteja preparado para morrer hoje, mas se possível procure viver uma eternidade'. O interessante é que não houve angústia. Senti que o difícil é viver. Morrer não é tão complicado".


O que um profissional pode esperar da vida aos 75 anos, depois de conquistar o reconhecimento internacional, de formar 500 discípulos na escola que criou há 40 anos e de ter seu nome citado como referência no mundo quando o assunto é sua especialidade? O único desejo do cirurgião plástico Ivo Pitanguy é fazer o que sempre fez. Seja mantendo a beleza de mulheres e mitos como Sophia Loren, salvando vidas como a do piloto Niki Lauda ou operando de graça pacientes sem recursos da 38ª Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, no Rio de Janeiro. Três meses depois de sofrer complicações na cirurgia para a retirada de um aneurisma no abdômen, o cirurgião que já foi enredo da escola de samba carioca Caprichosos de Pilares, em 1999, retomou seu cotidiano.
O mineiro de Belo Horizonte e membro da Academia Brasileira de Letras é casado há 40 anos com Marilu, pai de quatro filhos e cinco vezes avô. Nas horas vagas, se divide entre sua ilha em Angra dos Reis, onde mantém uma reserva com cerca de 400 espécies da Mata Atlântica, e a casa de Itaipava, na Região Serrana do Rio. Apesar de recusar o rótulo de bon vivant, o cirurgião que trabalha 10 horas por dia na sua clínica em Botafogo, zona sul carioca, onde recebeu Gente, reconhece que sabe curtir a vida. “Aproveito a vida porque tenho sorte de fazer o que gosto”, diz ele, considerado na França uma das personalidades do século, ao lado de Freud e Einstein no Livro do Milênio, lançado em junho.

Qual o segredo de chegar aos 75 anos com o mesmo vigor para o trabalho?


Criei minha clínica e a Santa Casa, e sinto satisfação de ter formado uma equipe que me permite trabalhar com prazer. Tenho ainda a satisfação de ter criado uma parte dela com atendimento para a população mais carente. O ser humano é o mesmo, independente da condição social. Diante do médico, qualquer um tem a mesma postura, está precisando de alguém. E o médico diante do outro sente que seu trabalho é mais uma questão de meios do que de fins. Se fôssemos de fins seríamos deuses. Mas, sendo de meios, podemos apenas completar o trabalho do criador. Temos sempre um aprendizado de nossa humildade.

Como manter a humildade sendo uma das personalidades do século, ao lado de Freud e Einstein no Livro do Milênio, lançado em junho na França sobre as pessoas que mudaram o mundo?
Sou uma pessoa como as outras. No momento que eu não me considerar, realmente não estarei sendo humilde. Mas o fato de me considerar igual não impede que eu valorize aquilo que faço. Não que eu faça melhor que outro, mas procuro fazer o melhor que posso em relação à minha pessoa.

Qual a sensação de retocar um rosto como o de Sophia Loren?
Todo paciente que opero, cumpro meu objetivo, que é o de torná-lo feliz, não importa quem seja.

Há febre para se aumentar os seios. O silicone é modismo?

Há o senso comum de uma cultura que valoriza os seios mais volumosos como padrão de beleza. Não tenho nada contra, mas é preciso ter cuidado com o exagero. Se uma paciente me procurar querendo seios maiores do que os que eu ache compatíveis com sua estética, não serei eu o cirurgião que fará essa cirurgia.

O senhor faz muitos implantes de silicone?

Fazemos todos os procedimentos da cirurgia plástica na clínica, e os implantes de silicone estão incluídos nesses procedimentos.

O silicone tem riscos?

Dos materiais que costumam ser colocados no corpo humano, o silicone é o mais tolerável. Não há problemas com as próteses para tornar os seios proporcionais ao corpo da mulher. A única coisa que não é interessante, e eu fui um dos primeiros a alertar sobre isso, é utilizar o silicone injetável. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica condena esse procedimento, que ainda é usado por pessoas que não são cirurgiões. Quando se injeta o silicone para corrigir rugas ou aumentar as mamas, o material pode parar em outros lugares do corpo. Esse é o perigo.

O que acha do crescimento do culto ao corpo no Brasil?

Isso aumentou no mundo todo, mas tem fatores geográficos nesse culto. No Brasil, a pessoa está exposta ao sol. O corpo deve ser visto. Faz parte da cultura. Mas existe o fato de a mídia utilizar a juventude em excesso para vender. Não há nada mais belo que a juventude, mas acho que essa utilização é um pouco pecaminosa, porque os jovens de hoje não são iguais aos velhos de amanhã. Não podemos deixar de cultuar o belo, mas o fato é que hoje existe um exagero.

Qual o papel do cirurgião plástico nessa questão?

Ele não pode jamais ir pelo modismo. Tem que ir pelo próprio julgamento, porque a moda passa e a cirurgia fica.

É comum pessoas com problemas aparentemente insignificantes?

Pelo menos de 5% a 10% dos pacientes têm algum problema além do orgânico. Há pessoas que nos procuram que estão muito bem, mas que não se vêem bem. Você pode sentar diante de mim e transportar um outro problema, que vem do fundo da sua parte orgânica, modificada pelo comportamento psíquico. Aquilo o influencia de tal maneira que você acha que a correção de uma dobrinha qualquer, que para mim é inexistente mas para você é real, seria a solução.

O que fazer nesses casos?

Cabe ao médico não fazer certas cirurgias, porque ele não vai conseguir o resultado que o outro espera. Digo, então, que na verdade o suposto defeito dele não me parece tão mau e aconselho que ele procure uma outra opinião, de outra área mais psíquica.

Já operou alguém que não precisava da cirurgia?
Às vezes cometemos enganos. Agora, alguém pode entrar no meu consultório com um nariz enorme que não digo uma palavra. Quero que diga porque veio. O ser humano tem o direito de tolerar e conviver com suas deformidades, não é obrigado a corrigi-las. Mas quando a correção é possível é extraordinário, porque ela reintegra o indivíduo ao seu meio. O conceito de saúde hoje passa muito pelo bem-estar da mente. O cirurgião hoje é como um psicólogo com um bisturi na mão.

Sua cirurgia para a retirada de um aneurisma no abdômen teve problemas. Teve medo de morrer?

Descobri o aneurisma numa ressonância magnética que fiz após um tombo na Suíça, quando estava esquiando. Desci junto com uma nuvem e fiquei sem ver nada. Aí, sim, tive medo de morrer. Não vi um monte de neve e tive uma queda violenta. Fui muito bem operado pelo doutor Adib Jatene. O problema é que, com a queda, tive uma pequena hérnia que rompeu um pouco o músculo. Ele não resistiu e rompeu os pontos. Tive de operar de urgência no Rio, em condições mais precárias, mas correu tudo bem. Já até voltei a mergulhar.


Foi mergulhando, aliás, que o senhor esteve perto da morte...
Isso foi na década de 70, na África do Sul. Desci com um guia para procurar um navio que estava afundado no Cabo da Boa Esperança, no encontro dos oceanos Índico e Atlântico. Encontramos o navio e, quando fui pegar um torso de madeira de uma mulher, fiquei preso nas ferragens e perdi o respirador. Não sei quanto tempo se passou até o guia me achar, mas vi um caleidoscópio com várias coisas da minha vida. Tudo muito iluminado, e no meio dessa confusão toda me veio um pensamento que dizia mais ou menos assim: “Esteja preparado para morrer hoje, mas se possível procure viver uma eternidade”. O interessante é que não houve angústia. Senti que o difícil é viver. Morrer não é tão complicado.


Depois da cirurgia, mantém o mesmo ritmo de trabalho?
Na minha vida, já operei a população de uma cidade pequena, algo em torno de 60 mil, 70 mil pessoas. Depois da cirurgia continuei operando muito. Não tenho idéia de números, mas meu ritmo de trabalho é quase o mesmo. Hoje montei uma equipe que me dá condições de trabalhar com menos desgaste, principalmente nas cirurgias longas.

Como é a sua rotina?
Acordo às 7h, caminho com meus quatro cachorros, faço ginástica, nado e vou trabalhar entre 8 e meia e 9 horas. Quando não vou à Santa Casa, fico na clínica até umas 19 ou 20 horas. Inclusive sou o personal trainer do meu segurança. Ele um dia me disse que emagreceu 10 quilos me acompanhando. Minha paixão pelos esportes começou na infância, em Belo Horizonte. Comecei com a natação, passei pelo vôlei e depois para o tênis, minha maior paixão.

Considera-se um bon vivant?
bon vivant aproveita tanto a vida que faz disso a sua arte. Nesse caso eu seria o anti-bon vivant, porque trabalho excessivamente. Por outro lado, do que eu faço no meu trabalho, eu gosto. O que tiro muito é o fim de semana e também as viagens que faço a trabalho. Se dou uma conferência em Florença, por exemplo, posso aprender um pouco mais sobre a cidade.

O senhor se submeteria a uma cirurgia plástica?


Sim, mas não tive tempo ainda.