segunda-feira, 19 de setembro de 2016

É PELÉ QUEM ESTÁ FALANDO...

A matéria já era capa, um furo, como dizem nas redações, e depois de mais de mês de apuração com algum grau de tensão (a possibilidade de perder a história ou a exclusividade dela, por exemplo, pra outra revista da casa mais velha, mais forte), o repórter enfim começava a escrever, a quatro, cinco horas do auge da insanidade mental de um fechamento semanal, sob a batuta de outra capital. Faltava a posição do mais famoso envolvido no caso, mas isso, dada a condição de atleta do século, ídolo mundial, eterno, do sujeito em questão, já se sabia difícil, quase impossível de conseguir. Na véspera, pela manhã, havia sido enviado o email a quem de direito com o relato do caso, o anúncio do fechamento na noite seguinte e o pedido, por favor, de entrevista. Só restava esperar e escrever a matéria com o aval do diretor de redação, a garantia dele de que tudo bem sem o cara, de que só a confirmação da história que ele tinha ouvido de um amigo e passou para o repórter já estava ótimo.

Então escrevia, o repórter, ou tentava, encasquetava com um monte de coisa logo na abertura e não avançava, quase nada, quando tocou o telefone na mesa da secretária, a primeira, em frente à porta, das seis espalhadas pelos quarenta, cinquenta metros quadrados da salinha da sucursal, que tinha ainda dentro dela dois cubículos ainda menores, um pra fotografia, outro pra chefe. Eram três os repórteres da redação, um se chamava Eduardo e do texto travado na tela do computador deu pra escutar claramente, como sempre, a secretária expansiva, baixinha sorridente ao telefone dizendo: "senhor, aqui nós temos Eduardo e Luís Edmundo. Luis Eduardo nós não temos". Passaram-se três, quatro segundos e tocou o ramal do repórter, que primeiro ouviu a brincadeira trivial, banal, com seu mome (não é o animal, não, né?) e depois a identificação na voz inconfundível, com a nitidez de uma imitação perfeita: "é Pelé quem está falando..."

Abaixo, a matéria.

Revista Istoé Gente, edição 141, de 15 de abril de 2002

"A Flávia é minha filha. Só não falava nada para preservar a privacidade dela”.



Em novembro de 1991, Édson Arantes do Nascimento, o Pelé, arrumou uma brecha em sua agenda lotada de compromissos para um encontro especial em Santos. Durante cerca de uma hora, o maior jogador de futebol de todos os tempos conversou com a então estudante de fisioterapia Flávia Christina Kurtz V. de Carvalho, na época com 24 anos. Logo que viu a moça, o Atleta do Século 20 desconfiou daquilo que confirmaria mais tarde: era sua filha. Flávia, que ligara dias antes para o escritório do pai querendo marcar um encontro, tinha sido fruto de um relacionamento relâmpago que Pelé teve em Porto Alegre, em 1968, quando esteve lá para um jogo do Santos. “Quando ela começou a falar quem era e contou sua história, comecei a reparar em seu rosto e vi que ela era da família”, assumiu Pelé, ao ser procurado por Gente por telefone, da Flórida, para onde viajou a negócios. Por telefone, Flávia não quis se manifestar e, após falar com o pai, marcou entrevista coletiva para quarta-feira.
Mesmo tendo o pressentimento de que estava falando com uma filha, o ex-craque diz ter esperado o resultado de um outro encontro para ter certeza do que estava pensando. “Mulher sempre tem mais sensibilidade para essas coisas, então quis saber qual seria a reação de minha mãe”, contou. Na conversa com o pai, a própria Flávia manifestara o desejo de conhecer a avó Celeste. O Atleta do Século 20 consentiu e forneceu o endereço para que ela procurasse a mãe dele, em Santos. Como viajou um dia depois de ter visto a filha, não participou do encontro entre avó e neta. Mas, por telefone, quis saber a opinião de Dona Celeste depois que as duas se falaram. “Minha mãe me disse: ‘Filho, não precisa nem fazer exame para comprovar. Ela é tua filha’. Aí que tive certeza.”
O ex-craque acabou seguindo o conselho da mãe, tanto que nunca fez o exame de DNA que comprovaria que a estudante era sua filha. Hoje com 32 anos e já formada, Flávia trabalha como fisioterapeuta em uma clínica de ortopedia de São Paulo e não está registrada no nome do pai. Pelé não revelou quem é a mulher com quem se relacionou em Porto Alegre. “Prefiro manter em sigilo, porque a mãe dela é casada e criou a filha junto com o ex-marido, que registrou a criança em seu nome. Digo apenas que ela era estudante de jornalismo e hoje deve trabalhar como jornalista”, disse.
Flávia não entrou na Justiça contra o Rei do Futebol como optou a vendedora Sandra Regina Machado, 37 anos – fruto de um relacionamento de Pelé com a empregada doméstica Anisia Machado e reconhecida como sua filha pela Justiça, após entrar com processo de reconhecimento de paternidade contra o pai, também em 1991. “Tive um sentimento legal quando a conheci exatamente porque ela não veio me pedir nada. Ela veio contar a história dela e queria me conhecer. Como não exigiu nada, acabou ganhando tudo o que quis”, revelou Pelé.
De dezembro de 1994 a março de 2000, Flávia recebeu do pai uma pensão mensal equivalente a cerca de US$ 1 mil. O dinheiro era depositado em sua conta 9311419, da agência 2400 do Bradesco, em Porto Alegre, e ajudou Flávia a pagar a faculdade de Fisioterapia, que cursou na capital gaúcha. Depois de formada, a filha de Pelé foi morar em São Paulo. Hoje, ela trabalha numa clínica na capital paulista e mora com o marido, executivo de uma multinacional, num apartamento de dois quartos no bairro do Morumbi. “Ela é uma pessoa discreta e nunca quis aparecer. Sempre quis preservar a privacidade dela, por isso essa história nunca foi tornada pública", afirmou o Atleta do Século.
De relações cortadas com Pelé desde que foi acusado de se apropriar de US$ 700 mil recebidos pela Pelé Sports & Marketing – referentes a um evento que a empresa prometera realizar de graça para o Unicef, em 1995, na Argentina –, o empresário Hélio Viana foi quem revelou a Gente a existência da filha de Pelé, durante entrevista concedida na segunda-feira 1º. Ele tem uma outra versão para justificar o tempo em que Flávia permaneceu incógnita. “O certo seria o Pelé fazer o exame de DNA, reconhecer e pronto, mas ele preferiu o caminho da esperteza. Cooptou a moça e dava cerca de US$ 1 mil por mês para ela não entrar com processo. Fez isso pra dizer, na medida em que a Sandra começasse a incomodá-lo, ‘olha, tenho outra filha, que reconheço, ajudo, porque não entrou na Justiça contra mim’.”
Segundo Pelé, toda a sua família sempre soube da existência da filha gaúcha de Édson Arantes do Nascimento. “Ela é de casa e já conheceu todo mundo, o Edinho, a Kelly e a Jennifer. O Joshua, a Celeste e a Assíria também”, disse, referindo-se a seus outros filhos e à atual mulher. Hélio não crê no carinho que Pelé diz ter pela filha. “Acredito que o sentimento do Pelé pela Flávia seja o mesmo com relação à Sandra. Ele ignora as duas”, diz.
Se hoje não esconde as críticas ao antigo sócio, Hélio Viana viveu uma situação bem diferente nos últimos 18 anos. Apresentado a Pelé em 1984 – quando ocupava um cargo no governo de Leonel Brizola no Rio e foi procurado para conseguir o apoio da Polícia Militar às filmagens de Pedro Mico, filme de Ipojuca Pontes protagonizado por Pelé –, o advogado que nunca exerceu a profissão consolidou-se como empresário ao trabalhar a marca Pelé de 1986 até o rompimento dos dois, em novembro.
Casado há sete anos com a ex-miss Brasil Leila Schuster, 29, e pai de Klaus, 6, e Lucas, 7 – este último filho de um relacionamento fora de seu casamento –, Hélio admite que ganhou muito dinheiro trabalhando com Pelé. “Deus nos colocou juntos para que um ajudasse o outro. O Pelé era uma marca adormecida que permitiu que eu executasse toda a minha capacidade”, afirma.
No início de seu trabalho, o sócio de Pelé procurou a ajuda de Mário Amato, na época presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), que o conhecia desde que o advogado tinha sido um dos coordenadores da campanha das Diretas Já, em 1984. “Ele botou toda uma estrutura à minha disposição e começamos a trabalhar”, lembra. Uma pesquisa encomendada mostrou que, se a popularidade do nome continuava em alta, as opiniões sobre o maior jogador de futebol de todos os tempos estavam longe da unanimidade conquistada nos gramados. “Mostramos entrevistas num telão em que as pessoas diziam que o Pelé já era, que não ligava para o povo e que só dizia besteira, como na vez em que disse que brasileiro não sabia votar”, lembra Hélio. 
A situação se reverteu, segundo o empresário, com o contrato com a Mastercard, assinado em 1991. A idéia era fazer Pelé viajar pelo mundo, falando sobre futebol, tudo patrocinado pelo Mastercard. “Foi isso que consolidou internacionalmente a imagem de Pelé como formador de opinião”, afirma. Em vigor até hoje, o contrato rende ao Atleta do Século cerca de US$ 5 milhões a cada quatro anos de compromisso. Como empresário, Hélio ficava com 20% dos contratos de Pelé. Em 16 anos, o filho de um caldeireiro da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) nascido em Volta Redonda, no Sul Fluminense, único homem entre cinco irmãs, saiu de um apartamento alugado de três quartos em Ipanema para uma mansão em São Conrado, no Rio, de 2,5 mil metros quadrados. A casa serviu de cenário para a residência da personagem de Marieta Severo na novela Laços de Família.
O empresário só não gostava quando tinha de lidar com assuntos particulares do antigo sócio, como as filhas fora dos casamentos. “Tinha que fazer negócio e o comportamento do Pelé, querendo esconder essas coisas, atrapalhava a marca.” No caso de Flávia Christina Kurtz, o Rei do Futebol discorda: “Não há nada de errado nessa história. A Flávia é minha filha. Só não falava nada para preservar a privacidade dela”.