domingo, 11 de setembro de 2016

A ENTREVISTA ATRAPALHADA

A revista tinha entrado de vez em sua fase ágil, dinâmica, colorida, alegre e com textos cada vez mais curtos, toda a importância, quase, pra foto, de preferência de gente bonita, sensual, sobretudo famosa, condições fundamentais pra que a matéria, no crivo implacável da chefia da outra capital, ganhasse mais do que as habituais duas páginas. Nesses casos, em alguns deles na verdade, vinha o e-mail estimulador do comandante maior, acima da redação, o elogio monossilábico, no ponto, numa palavra só e com o indispensável ponto de exclamação: “show!”. Ou então a sagacidade dele,  garotão de menos de quarenta bem arrumado, sempre de terno, que lembrava do título de uma música conhecida pra definir, sucinto, esperando talvez urros da chefia da sucursal e dos repórteres à sua volta: “simply the best!” 

O entrevistado até tinha alguma fama, mas não nos índices medidos pelo ibope, que realmente contavam pra chefia da outra capital, da redação e acima dela, do garotão. Beleza e sensualidade também não eram lá seus principais atributos e pra completar a pauta não poderia ser o tradicional pingue-pongue de três páginas, por algum motivo que hoje foge à memória, se já havia sido feita alguma entrevista com ele antes ou não, não se sabe ao certo. Sabe-se é que, além do nervosismo inevitável, dado o tamanho do personagem, o repórter não estava muito à vontade, nem sabia direito o que fazer, como entrevistar o sujeito que abriu a porta do apartamento dele no Leblon com a cara risonha, conhecida do autor do Sargento Getúlio e de Viva o Povo Brasileiro.

O resultado da entrevista, na linha editorial da revista, tá aí embaixo.

Revista Istoé Gente, edição 142, de 22 de abril de 2002

“Não estou sem beber álcool, só não estou enfiando o pé na jaca”.

Ele voltou a fumar um ou outro cigarro por dia. Toma uma dose de uísque de vez em quando, apesar de o guaraná ser a bebida mais consumida ultimamente. “Não estou sem beber álcool, só não estou enfiando o pé na jaca”, afirma. Baiano de Itaparica radicado no Rio de Janeiro, João Ubaldo Ribeiro não consegue se livrar totalmente de alguns vícios. O da escrita é um deles. Aos 61 anos, ele está em primeiro na lista de Gente com Diário do Farol, o 18º livro da carreira. Com o livro concluído, o tempo livre aumenta. Ubaldo costuma acordar cedo, lá pelas 7h, 8h. Duas horas mais tarde vai até o calçadão do Leblon, onde caminha por 20 minutos. “Detesto andar. Faço isso todos os dias porque sou chantageado por médicos e pela família”, diz. “Dizem que vou ter morte horrorosa se não andar e que terei uma qualidade de vida terrível no ápice da velhice, se é que existe tal coisa.”
Precavido, ele já tomou uma providência para diminuir o sofrimento da via crucis diária que vem encarando: comprou um relógio com o qual marca os 20 minutos que é obrigado a caminhar. “Não passo um segundo disso”, diz ele, que reconhece a falta de condição atlética e nem se importa mais em ser ultrapassado na rua por senhoras gordas.
Depois de se exercitar, o escritor trabalha um pouco, almoça e dorme entre as 14h30 e 18h. Ao acordar, volta a escrever até as 2h da madrugada. As visitas ao botequim Flor do Leblon não têm hora certa, mas elas acontecem pelo menos uma vez ao dia. Apesar do aparente bom humor, Ubaldo confessa a dificuldade em conviver com a velhice e cita o amigo Jorge Amado para explicar o que sente. “O Jorge dizia que já tinham lhe falado muito das alegrias da velhice, mas não lhe apresentaram nenhuma. Comigo é a mesma coisa. Só conheço a preguiça de me abaixar, me cansar para botar sapato”, diz.
Testemunha da amizade entre Ubaldo e Jorge Amado, a escritora Zélia Gattai lembra de uma história ocorrida em Lisboa, nos anos 80, quando Ubaldo morava em Portugal. Os três amigos foram às compras e, numa loja, Zélia notou que a vendedora olhava fixamente para o autor de Gabriela eCapitães de Areia e perguntou no ouvido de Ubaldo se aquele não era Jorge Amado, escritor das novelas brasileiras. Na época, a novela Gabriela, baseada no romance de Jorge, era sucesso em Portugal. “João Ubaldo não só confirmou como disse que às vezes o Jorge escrevia com o pseudônimo de Janete Clair (novelista autora de sucessos como Irmãos Coragem e Selva de Pedra)”, contou Zélia. “A moça achou que o Jorge escrevia as novelas brasileiras e, graças ao João Ubaldo, deve estar achando até hoje.”
Membro da Academia Brasileira de Letras desde 1993, o imortal que, por preguiça, raramente vai à ABL não opina sobre a possível entrada de Paulo Coelho na academia. Quanto às eleições presidenciais, pensa em Lula, mas não declara voto. O novo livro é o que ocupa seus pensamentos. Para Ubaldo, a história do padre que chega às raias da crueldade, sem qualquer senso moral, não é tão inverossímil quanto possa parecer. Tanto que compara o personagem que pensa em cortar o pai em pedacinhos com um dos crimes cometidos pelo traficante Fernandinho Beira-Mar, no Rio. “Ele dizia no telefone aos comparsas: ‘Corta um pedaço da orelha, agora um dedo’. Então não é uma coisa tão incomum.”